sábado, 17 de outubro de 2009

Capítulo 6


O tempo passa e eu espero tudo melhorar. Tem noites em que fico de bom humor. Gosto tanto de sentir a respiração de Isabela dormindo...
Mas não hoje. Eu hoje estou como que de olhos abertos para toda a desgraça que está se passando. Eu quero fugir, ir pra casa. Mas que casa?
Nem antes de tudo isso acontecer eu tinha alguma idéia de onde é isso. Não me expliquei direito, mas tudo isso que escrevi foi com o notebook que achei. Consegui recarregar as baterias e por isso estou escrevendo. Mas quem lerá?
Talvez eu só esteja escrevendo como uma forma paliativa. Para não me entregar ao desespero. Mas até quando eu vou segurar o forte? Não sei dizer, e prefiro não imaginar. Pode ser a qualquer momento, afinal...

-    Já ta escrevendo aí, Roberto? – disse Isabela
-    É, eu to fazendo isso porque me alivia. Faz eu me sentir melhor.
-    Escreve pra mim?
-    Escrever o que pra você?
-    Não sei, uma mensagem pra mim vinda de você. Pensa no que poderia escrever pra mim e depois me mostra.
-    Ta querendo me dar motivação de vida?
-    Não sei. Só me bateu a vontade.
-    Como assim?
-    Não dá pra explicar, Roberto. Tem coisas que eu só sei e pronto.
-    Eu às vezes também sinto isso. Só que não aceito essas certezas. Elas me assustam.
-    Te assustam porque?
-    Porque elas parecem sólidas, mas depois eu vou ver que são frágeis.
-    São falsas?
-    Não, mas parecem não passar de invenção minha. Um monte de besteira que simplesmente surge na minha cabeça.
-    Você precisa ter mais fé...
-    Não consigo tal proeza. Não posso fechar meus olhos.
-    Você é engraçado, Roberto. Viaja pelo outro mundo e o conhece, mas ainda assim continua dizendo pra si mesmo que ele não é real. Você dorme e seu espírito se mostra a você. Você consegue entender e depois nega o que entendeu só porque não pode provar aos outros. Porque?
-    Não sei. Olha, me diz você uma certeza sua. Daí eu vou te dizer o que eu pensaria se essa certeza fosse minha.
-    Não ri de mim?
-    Apesar de negar eu também sou assim. Rir de você seria rir de mim mesmo. Conta pra mim...
-    Ta bem, então.

Ela deu uma pausa. Hesitou em falar por uns instantes e Augusto chegou.

-    Os pombinhos vão dormir o dia todo?
-    Quer se juntar ao barco?
-    Ménage? Ah não, agora temos que planejar nossa partida.
-    Hahahahaha! Não viaja, maluco. – respondi
-    Partida? – disse Isabela
-    É. Sargento disse que temos um mês para chegar no sul ou eles vão embora e ficaremos presos aqui pra sempre.
-    Eu ainda não to convencido de que nós vamos encontrar qualquer coisa no sul. Eles têm o que, uma fortaleza lá pra segurar essas coisas e pousas aviões?
-    Não sei. Vamos lá conversar?
-    Ta bem, então. A gente termina nossas conversa depois, Isabela.

Fomos até o telhado do mercado. Por algum motivo o sargento não gostava de ficar ali dentro. Dizia que o ambiente o oprimia.

-    Porra Roberto, vou te contar. Tu ronca pra caralho. Na moral, da pra atrair os monstros com esse barulho. – disse o sargento.
-    Hahahaha! Não te incomoda, Isabela?
-    Eu tenho sono pesado. Quando acordo e você ta roncando eu peço pra você parar e você para. – respondeu ela
-    É, mas daí quando você dorme ele começa a roncar de novo. Tomá no cu! Enfim, ta na hora de planejarmos nossas partida. Já passou um mês e os recursos não vão durar pra sempre. Como vocês estão vendo por aquele ali, está andando como se nada tivesse acontecido. Cheio de energias.

Sargento deu um tiro de 38 pro alto e o zumbi berrou e correu até a parece do mercado.

-    Vamos como? Cara, isso parece ser furada pra mim. A estrada deve estar lotada deles. Vai ser morte certa sair daqui. – disse eu.
-    Vai ser morte certa ficar aqui, cara. Essas coisas vão entrar aqui mais cedo ou mais tarde e vão nos cercar. Vamos ficar sem recursos e morrer! – Disse Augusto
-    E porque viver é uma coisa boa?
-    Ta falando do que?
-    Nada não. Olha, se querem fugir é melhor nós pegarmos um barco. Passamos rápido com bastante gasolina e suprimentos até conseguirmos chegar numa marina. Eu não sei nem como ligar um barco, mas acho que damos um jeito.
-    Deixa isso comigo, Roberto. Eu sei navegar. – disse Isabela. – Meu pai tem um iate.
-    Você é mesmo gerente do mercado? – perguntou um dos soldados.
-    Sou sim, porque?
-    Porra, se teu pai te um iate é porque você tem dinheiro. Então o que é que você ta fazendo trabalhando nesse mercado?

Ela não respondeu. Pareceu se sentir insultada e isso acabou me afetando.

-    Ta saindo pela tangente, cara. Deixa ela cuidar da própria vida e presta atenção no assunto.
-    Ta putinho?
-    Então, vamos rever nosso inventário. Serão só dois carros?

Planejamos nossa partida com minúcias e diversas alternativas. Ficava difícil decidirmos onde parar, porque não sabíamos como estaria a estrada. Acabamos chegando a um consenso. Tínhamos pouca munição e só uma armadilha para os zumbis. Encontrar munição na estrada era algo incerto.
O resto do dia eu passei pensando. Na verdade mais meditando. Minha mente ficou vazia. Sem imagens ruins e nem boas, sem sentimentos, sem conceitos. Nada. E isso me trouxe paz. Uma sensação que a muito eu havia esquecido.
Sentei na cama e liguei o notebook. O gerador estava ligado. A melancolia tomou conta de mim e comecei a escrever para Isabela:

Um belo fantasma

Seria real tal brilho?
Poderia existir?
Você vem como um belo fantasma,
Um espírito que me ama.

Você flutua, é guiada pelos ventos,
Não usa força, mas move montanhas.
Derruba muros, destrói armaduras.
Difícil acreditar que você existe.

Talvez eu seja um louco
Eu já não me importo
Vou te abraçar, ficar contigo.
Sentir sua fantasmagórica beleza.

Sim, um calor dos espíritos...

Isabela leu e parecia um tanto confusa. Olhou para mim e continuou lendo e relendo a mensagem. Acho que não consegui atender às expectativas dela, não sei.

-    Como você pode ser tão cego, Roberto?
-    O que?
-    Porque você fez isso?
-    Não estou te entendendo, querida.
-    Até de mim você duvida! Até de mim!
-    Me desculpe. Não sei o que mais poderia ter escrito. Não foi minha intenção te ofender. Por favor, me perdoa...
-    Eu? Te perdoar? Roberto, seu espírito é que tem que te perdoar. Você está se afastando cada vez mais de si mesmo!
-    Não estou conseguindo te entender...
-    Quem é você, Roberto?
-    Eu... A pergunta parece vaga e a única respostas que posso dar é que sou o que sou. E isso também é vago.
-    Viu? É esse o problema. Você sabe sim. Está dentro de você e você já viu. Porque nega a si mesmo?
-    Nego certos pensamentos insustentáveis porque não quero dar ao mundo cores fantasiosas.
-    De que mundo você está falando?
-    O que?
-    Do seu mundo ou do mundo de fora?
-    Você ta me confundindo, querida.
-    Não estou. Você está confundindo a você mesmo. Abra seus olhos e verá de novo isso que você nega em nome de uma racionalidade frágil.

Passamos uns instantes em silêncio. Ela ta falando das minhas certezas. Sim, aquelas que aparecem repentinamente na minha mente e que eu renego com minha ácida crítica filosófica. No fundo, eu sei que ela está certa. Na superfície, as palavras dela parecem loucura. Tudo tão contraditório...

-    Me fala uma certeza sua? Aquela que você ia me falar hoje cedo.

Ela sorriu. Nesse momento foi um sorriso diferente dos outros. Ao mesmo tempo me incomodou e me trouxe paz. Porque ela já não me via como um grande herói. Parecia me olhar com caridade. Da forma que uma professora olha pro aluno. Esse foi o sorriso dela. Eu gostava da idéia de ela me admirar. Isso sempre foi irrelevante pra mim, mas agora que o mundo acabou isso veio à tona: alguém de fora me via e me admirava, eu não estava mais escondido. Não de todos. Mas eu fiquei em paz, porque nesse momento ela tinha visto a verdade. Eu não sou um grande herói. Não sou um grande sábio. Não passo de um aprendiz. Na verdade o que me incomoda é a pergunta: ela gostará de mim amanhã?
Loucuras, loucuras...

-    Eu sei o que causou tudo isso.
-    Aé? O que foi?
-    As forças das trevas estavam trabalhando nisso a tempos. Eles conseguiram penetrar tão profundamente no espírito das pessoas que elas se tornaram bestas sem nenhuma capacidade de tomar decisões diferentes daquelas para as quais foram programadas. Agora elas correm para todos os lados atrás de algo que nem sabem bem o que é e que nunca trás nenhuma satisfação. Essa desgraça trará aos homens uma expansão espiritual tremenda e eles acabarão por criar um sistema mais sábio. De todo esse mal, que sei que você odeia, algo bom sairá. É o curso natural do universo. Deus quebra vasos velhos e cria vasos novos. Porque os homens buscam entendimento quando sofrem, mas não quando se alegram.

Aquilo me afetou profundamente. Porque, como antes, eu concordei com ela no fundo, mas não co meu senso crítico racional. Eu sou uma contradição. Não falei mais. Só deitei e dormi depois de uns minutos olhando pra ela sem reação.

Eu estava num espaço cercado por muros. Era uma estrada. Havia um altar e um dos monstros pendurados nesse. Isabela surgiu como que flutuando e me mandou dar um soco na testa do monstro. Era difícil porque ele tentava morder minha mão, mas eu parei na frente dele por uns instantes o fitando e ele parou de lutar. Ficou me olhando confuso como aquele que confrontei na estrada.
Dei um soco na testa dele e um anel saiu desta para o chão. Nele havia uma caveira com a boca aberta. Saia fogo na boca da caveira.

-    É o anel da morte. – disse Isabela.

Eu achei o anel lindo e o coloquei no dedo anelar da mão direita, ao que fui levado para o inferno.

-    Porque você me invoca? – disse Mefistófeles
-    Não te invoquei. - Respondi
-    Então porque usa meu anel? É louco? Devolva-o!
-    Não! Eu quero esse anel.
-    Devolva-o! Ele é meu!

Eu pulei e dei um murro na cabeça dele, e isso me levou de volta para a superfície.

-    Você colocou o anel no dedo?

Isabela fez a pergunta retórica sorrindo com um ar de orgulho. Muito bem.
Acordei.

Eu não consegui entender bem o motivo de ela ter orgulho. Afinal, eu usei o anel que invocou o diabo e tive que lutar contra ele. Isso é bom?
Meus sonhos vão ficando cada vez mais loucos.

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