sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Capítulo 9



Finalmente Carlos chegou. Depois de todo aquele sofrimento, depois de tudo aquilo. Alcançou a base de resgate. Todos aqueles dólares guardados tiveram alguma utilidade, afinal. Ao saberem que ele era um sujeito rico com conta bancária fora do país os americanos trataram de deixá-lo fora dos campos de refugiados. Deram a ele um lugar especial no avião, perto da janela.
Ele parou de olhar para dentro da aeronave onde podia ver pessoas em estado de choque, outras totalmente imersas em si mesmas ou falando sem parar compulsivamente. Lá fora ele viu destruição, fumaça, fogo. Ele viajava muito, e lembra bem de saber onde era o bairro dele. Casas enormes, clubes. Tudo destruído. Viu a casa dele e a cena continuou se repetindo em sua cabeça. Sua mulher e a filha sendo devoradas por um homem monstro. Tomou um tiro na cabeça e continuou atacando. Como isso foi possível?
Talvez ele tenha errado o tiro.
Sentiu no bolso aquela seringa enorme. Ninguém o revistou porque ele era rico. Um soldado estava tentando injetá-la em si mesmo bem antes de morrer. Ele imaginou que fosse morfina, mas era um líquido azul estranho. Tampou a agulha e guardou.
Seu corpo estava dolorido. Pancadas que monstros deram nele, tombos que levou fugindo. Ele já não suportava continuar acordado.

-    Essa é uma mensagem especial para você.
-    O que? Onde eu estou?
-    Você está em você.
-    Isso é um sonho?
-    Não, é uma mensagem?
-    Como assim?
-    Só ouça. Você foi escolhido. Quando te procurarem você vai se lembrar desse sonho e se lembrar do seu dever.
-    Que dever?

Ele foi acordado por uma comissária de bordo. Só ele e outro milionário tiveram direito a isso. Negou o que ela ofereceu e voltou a dormir. Dessa vez, os sonhos voltaram ao normal. Repetições levemente modificadas dos eventos traumáticos pelos quais ele passou.
Acordou duas vezes assustado pela realidade dos sonhos e voltou a dormir.
Chegaram no estado do novo México, mas ele e o outro milionário foram levados em sigilo para outro avião que os deixou em Nova York. Lá, estavam por conta própria momentaneamente.
Carlos tinha pelo menos três mil dólares no bolso da calça e também sua carteira com um cartão de crédito internacional. Por certo não teria problemas.
As pessoas andavam tranquilamente na rua, mas tranqüilidade era o que ele menos tinha em mente. Como podiam estar assim com tudo o que aconteceu? Será que não sabem?
Ele foi a um restaurante que costumava visitar e o expulsaram por julgar que ele fosse mendigo. O gerente o reconheceu. Talvez ele estivesse pensando que ele estava infectado.
Foi para um hotel que ele sempre achou deprimente, porque ali viviam prostitutas e drogados. Era um lugar barato geralmente usado como motel.
Pagou o equivalente a uma semana e saiu. Comprou roupas, escova de dente, tudo o que precisava. Ele andava meio sem rumo, sem razão para viver.
Quando saiu de uma farmácia um menino começou a atirar com uma arma de água no rosto dele. Disse que era um zumbi da América do sul.
Ele quis matar o menino, mas decidiu ignorar aquilo. Chegando no hotel ele tomou um banho, fez a barba, escovou os dentes. Depois deitou-se na cama e ficou olhando para o teto.
Tudo o que ele amou na vida foi destruído e essa gente fazendo piada. Pegou a seringa e ficou olhando para ela. Não tentou adivinhar que tipo de droga era aquela. Não imaginava nada, só olhava.
O quarto o sufocou e ele saiu de novo e na rua trombou com um torcedor de baseball. Havia um estádio ali perto. Mesmo sendo insultado pelo torcedor que era xenofóbico, ele pareceu interessado. Por algum motivo aquele homem parecia ser uma pista para alguma coisa. Não conseguiu unir aquilo a nada e continuou andando sem rumo. Olhava para os prédios, tão grandes. Tudo funcionando normalmente.
Entrou num cyber café e comprou um descafeinado. Sentou no computador e descobriu que antes daquela tragédia a esposa dele havia escrito um e-mail.

Amor,
Não quero tratar isso por e-mail, mas nem no telefone consigo te encontrar. Estou muito angustiada com as notícias de violência aqui por perto. Estou pensando em me trancar no quarto blindado. Quero você em casa...
Beijos...
Sua Gabriela

Ela só morreu porque abriu a porta pra ele. Por uns instantes ele ficou com a cabeça abaixada se torturando, mas logo se levantou. Não sentia tristeza, mas ódio. Muito ódio. Queria ver tudo destruído.
Entrou no Google e começou a pesquisar ao acaso.
“Hate”. “Death”. “Destruction”. “Undead”. “World devastantion”. Ficava olhando as paginas que apareciam. Clicava em algumas.
De repente sentiu um impulso de, numa dessas pesquisas, avançar nas paginas. Na terceira página um site o chamou a atenção. Dizia ser um convocado aos escolhidos.
Dentro do site ele ficou vidrado. Na página inicial ele viu uma foto de uma seringa idêntica à sua. Era apenas essa foto e um botão de entrar que pediu senha. Ele digitou “Genocide” e o site o levou a outra pagina. Ele voltou à entrada e digitou Death, ao que o site o levou à outra pagina. Volto á pagina de Genocide e começou a ler. Um texto relativamente longo, devia ter 15 paginas no Word. Explicava coisas estranhas sobre destruição em massa e mostrava pontos espalhados por todo o hemisfério sul e Oceania num mapa. Um dos pontos sobre os estados unidos era Nova York, precisamente no ponto onde ele estava. Ele clicou num ponto vazio no canto inferior esquerdo da pagina como que por impulso e abriu-se uma janela de Outlook com um e-mail. Contact@genocide.com.
Copiou o e-mail e levou ao seu e-mail no navegador. Enviou uma mensagem. O assunto era “i’m ready. NY” e no corpo da mensagem ele se identificou e colocou ali um endereço.
Imediatamente mandaram um pedido para ele apresentar uma foto da seringa. Ele tirou-a do bolso, embora nem se lembrasse de ter trazido de casa. Tirou uma foto usando a webcam da maquina e enviou em anexo.
Não responderam mais.
Ficou o resto do dia caminhando pela cidade sem rumo. Tentando entender o motivo de ter feito coisas sem perceber. Colocou a seringa no bolso sem perceber, soube a senha certa e adivinhou o lugar invisível do link. Mais assustadoramente, ele mandou uma mensagem a um estranho sem saber porque. Na verdade nem sabia do que estava falando quando falou. É como se alguém estivesse usando seu corpo.
No meio da cidade um policial o abordou e ele entrou em pânico. Começou a correr e o policial o perseguiu. Mas ele conseguiu pular uma cerca de quase três metros com grande facilidade, o que acabou deixando o seu perseguidor para trás. Enquanto corria ele colocou a mão no bolso direito da sua calça. Sentia que não podia perder a seringa.
Voltou para o hotel e na recepção descobriu que mandaram um pacote por ele. Chegou pelo Fedex. O atendente parecia chocado com o fato de que o pacote havia sido endereçado exatamente para o quarto em que ele se hospedou. Disse que quem estava naquele quarto havia pago um mês e que cancelou a estadia por causa de uma emergência pessoal. No momento em que o pacote foi enviado o quarto ainda estava ocupado pelo outro cliente, e apesar disso o pacote estava endereçado para Carlos Henrique Fonseca: precisamente o nome completo de Carlos.
Carlos não respondeu aos questionamentos do atendente e levou o pacote para o quarto. La dentro ele encontrou roupas exatamente com o tamanho que ele usa, inclusive meias e sapatos, um ingresso para um jogo de baseball e um celular desligado. Ao ligar o celular ele viu que duas mensagens não-lidas estavam listadas. A primeira dizia que logo depois que tudo estivesse consumado ele deveria mandar uma mensagem para o único número listado na agenda. A segunda mensagem era apenas um número: 52. Isso sugeriu a ele que esse número fosse o que deveria ser enviado. O número da agenda só tinha cinco dígitos, o que indica que era como aqueles que se vê no comercial. Provavelmente chegaria até uma central e não a uma pessoa com outro celular.
O bilhete era para um jogo que aconteceria em duas horas. Colado atrás do bilhete de entrada estava um papel com uma anotação aparentemente feita sem muito cuidado dizendo para ele chegar cedo no jogo e encontrar um lugar seguro e escondido antes de entrar para fazer o que era necessário.
Uma nova mensagem chegou em seu celular. Dizia que o número dois estava confirmado. Enquanto ele vestia a roupa que recebeu ele ligou a TV no CNN e viu notícias urgentes sobre infecção se espalhando pelo território alemão. As autoridades locais acreditavam que se tratava de um ataque terrorista. Da câmera do helicóptero ficou nítido que um homem escalou com facilidade um prédio de cinco andares e pulou deste pra outro, aparentemente fugindo dos tiros vindos dos agentes enquanto outros infectados atacavam o que viam pela frente sem tal habilidade. Segundo cientistas alemães que estiveram pesquisando nas zonas infectadas, são esses “jumpers”, como ficaram conhecidos, que iniciam as infecções. Lês não são infectados comuns porque não possuem nenhuma ferida de mordida. Parecem ter sido infectados por outra via que não o contato com outros infectados.
Carlos lembrou-se de ter visto um desses perto da casa dele. Um policial deu-lhe um tiro na cabeça e ele continuou correndo. Parou de saltar, mas continuou correndo e matou o policial. Esse infectado era um soldado americano, e outro estava com essa seringa nas mãos. Seria possível que essas seringas eram o princípio da infecção?
Ele vestiu a roupa e colocou a seringa no bolso do casaco junto com o bilhete de entrada.
Ao chegar lá viu o atendente discutindo com um policial. Quando ele chegou o atendente apontou para ele e o acusou de ser uma gente da KGB.

-    Senhor, fique calmo. A Rússia possui maiores problemas. Do que nos atacar. A guerra fria acabou há quase duas décadas.
-    Esse sujeito aí tem cara de cubano, não está vendo? Esse pacote foi enviado ontem de manhã e nesse horário o quarto dele estava ocupado pelo senhor Stevenson. Isso é uma conspiração!

O policial olhou para Carlos curioso. Por algum motivo ele conseguiu inventar uma mentira:

-    Acredito que as preocupações dele são decorrentes da minha negligência em esclarecer os fatos.
-    Então se explique.
-    O Senhor Stevenson é amigo íntimo meu, e como talvez você não saibam, ele fica nesse hotel porque ainda não tem um endereço fixo em Nova York. Eu mesmo entrei em contato com ele sobre problemas com seu filho que foi preso e ele saiu ás pressas. Ele estava por receber um pacote e me pediu para eu ocupar o quarto dele e recebê-lo. Aliás, o dinheiro que eu usei aqui foi dado justamente por ele. Amanhã de manhã ele estará de volta e usará o conteúdo do pacote aqui em Nova York. Não precisará carregar nada até Los Angeles e ainda me ajudou a encontrar um lugar para dormir por uns tempos, já que meu país foi devastado.

O policial pareceu convencido, mas não o atendente. Continuou gritando que Carlos era um mentiroso terrorista, ao que o policial se desculpou, indicando com gestos que o velho não batia bem. O policial disse que estava torcendo pelo mesmo time de baseball que ele e o ofereceu uma carona até o estádio. Percebeu que Carlos era rico, provavelmente. Ou então só era gente boa.
Ele chegou até o estádio e encontrou um lugar escondido. Havia ali um mendigo dormindo. Recebeu uma nova mensagem. Números 3, 4, 5, 6, 8 confirmados.
Eles pareciam ordenados, com a diferença de que não haviam confirmado o um e nem o sete.
Ele tirou o bilhete do bolso do casaco junto a seringa ao que alguns torcedores se aproximaram dele. Guardou ambos no bolso da calça.

-    Hey, latino! Ta fazendo o que com essa camisa! Roubou de quem?
-    Eu ganhei de presente.
-    Presente é o que eu vou te dar!

O torcedor deu um soco nele e ele não reagiu. Os outros o derrubaram no chão e o golpearam, mas ele nem tentou proteger o rosto. Defender o que? Não havia sobrado nada dele. Defender pra que?
Levaram o casaco e a carteira dele e saíram rindo. Ele tinha um misto de vazio e ódio. Tirou a agulha do bolso e o mendigo que estava ali dormindo falou com ele.

-    Você não tem que fazer isso, rapaz.
-    Eu tenho que fazer o que?
-    Viver limpo vai te manter numa vida digna. Foi isso me levou a morar nas ruas.
-    Minha mãe está morta. Ela se matou.
-    E você não tem nada a perder?
-    Eu não tenho ninguém e não sou mais ninguém.
-    E acha que isso aí vai te salvar.
-    Não. Isso vai me destruir.
-    É isso que você quer? Se destruir?
-    É. Te recomendo fugir daqui e ir para o mais longe possível. Praticamente todos por aqui morrerão.

Carlos amarrou um pedaço de pano do mendigo no braço e injetou todo o liquido na corrente sanguínea. Era uma seringa grande. Deixou ali o pano e se levantou. Colocou a mão no bolso para verificar se estava com o bilhete e o mendigo pensou que ele estava armado.

-    Ta armado! Ele tem uma bomba! Terrorista!

Um segurança abordou Carlos e o jogou no chão. O revistou e viu que ele não tinha bomba nenhuma e nem armas. Expulsou o velho por tê-lo feito perder tempo e levou Carlos até a entrada, embora não tenho tentado se desculpar com palavras.
Ele entrou na fila e ficou esperando por dez minutos para conseguir apresentar o bilhete e entrar. Muito longa. Logo que ele entrou, olhou pra trás e viu um sujeito de terno preto olhando pra ele e falando no rádio com um olhar preocupado. Lembrou-se de que cruzou com o mesmo indivíduo duas vezes na cidade. Era um homem negro e alto. Tinha bom condicionamento físico e uma cara incomparável de mal.
Ele apertou o passo quando o homem começou a se dirigir até o estádio e se sentou num ponto no meio do estádio, onde só havia um lugar vago.
A injeção parecia não fazer nenhum efeito. Já havia passado meia hora e Carlos continuava se sentindo normal. Talvez isso tenha sido algum tipo de piada. Mas quem faria uma piada dessas?
O homem entrou acompanhado por quatro seguranças. Procurava pela platéia, então Carlos procurou imitar o comportamento de todos. Ele não entendia bem aquele jogo, mas quando os outros se levantavam ele também o fazia. Até que seria divertido fazer aquilo noutra ocasião.
Num dado momento ele começou a sentir um calor intenso no peito, que precedeu outro calor idêntico na cabeça. Dois pontos de calor dentro dele que o deixaram zonzo, um pouco sonolento. Sentou-se e pegou o celular. Sete mensagens novas. Não leu nenhuma.
Mandou o número e apoiou o rosto nas mãos enquanto os cotovelos se apoiavam nos joelhos. Algo de melancolia o acometeu. Toda a raiva passou, mas naquele momento isso já não significava nada. Levantou a cabeça e apoiou as costas no banco, os sons começaram a se distorcer e as imagens a perder a nitidez. Ele viu luz, mas a luz estava no ambiente e o fim do túnel era negro. Seria o túnel para o inferno? Esse foi seu ultimo pensamento.
Ele começou a se debater violentamente no banco, ao que os indivíduos próximos começaram a olhar. Ninguém fez nada além de olhar. O homem que o procurava o encontrou, mas nesse momento já era tarde demais. Ele se reanimou e começou a atacar pessoas próximas. Primeiro a velha que estava do lado dele. Depois uma menina que estava logo atrás. Ele só dava uma mordida por pessoa. Quase sempre no pescoço. O homem atirou para o alto e todos começaram a correr. Ele gritava para que saíssem, mas a multidão se amontoava e Carlos continuava a matar um por um. Logo os primeiros a serem atacados se levantaram. A menina matou o pai. O homem atirou em Carlos e deu um grito com um megafone: Jumper!!
Em reação a isso a confusão aumentou, pessoas caíram no chão e foram pisoteadas. Os monstros saíram pelas ruas correndo com os vivos e os atiradores dos helicópteros não sabiam em quem atirar. O homem tentou acertar Carlos, ao que ele o atacou e, com uma cotovelada, o derrubou num local onde ele rolou por uma escada e foi parar na entrada do vestiário. O homem desmaiou.
Os atiradores encontraram Carlos, e ele fugiu pelo mesmo caminho que usou para entrar. Correndo ele jogava o peso do corpo para frente e usava um impulso fora do comum para correr. Ultrapassou carros em fuga correndo a pé e entrou num edifício pela janela do terceiro andar.
Enquanto isso toda a cidade era devastada e os militares pareciam não estar dando conta do problema. Usavam bombas com efeito sonoro, mas eram tantos os sons vindos de todos os cantos que os zumbis nunca se aglomeravam apenas nas bombas.
O celular de Carlos, jogado no banco do estádio, marcava um aviso de 45 novas mensagens.

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