segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Capítulo 13


O tempo passa e eu vou mudando. Mudando cada vez mais profundamente. Eu nem me reconheço mais. Mas ainda assim tenho uma sensação de que deveria mesmo ser assim. De que isso é algo mais próximo de mim do que o que eu era antes. Um sujeito agressivo que explode a cabeça de outrem sem piedade. Um sujeito que esfaqueou sem necessidade um infectado. Um sujeito que fez um pacto com o diabo. Que adora essas coisas e não sente um pingo de culpa. O que eu sou?
“I’ve got nothing left to lose,
But my mind...
I’ve got nothing left to choose,
So I think I’ll go insane.”
(The right to go insane, Megadeth)

Nosso combustível estava acabando. Achamos uma ilha relativamente grande. Uma ilha privada. Havia uma placa no cais avisando que era particular. Não é permitida a permanência de barcos sem autorização prévia. Havia um iate enorme ali.
Acordei com gritos que os outros estavam dando para chamar a atenção dos zumbis. Eu estava tendo um sonho e não me lembro de como foi. Mas sei que era um sonho muito bom. Que eu não queria ter acordado. Aquilo me irritou profundamente. Ter que enfrentar essa maldita realidade. Notei logo o intuito deles e corri para a metralhadora, que eles fixaram num ponto do barco. Tinha muita munição, e as balas eram enormes. Não sei dizer qual era o calibre.
Os monstros foram chegando no cais, mais ou menos enfileirados e eu atirei contra eles. Eu gritava e atirava. Eu estava gostando de destruí-los. Pararam de vir para o cais e começaram e chegar na beira da praia que ficava em volta. Atirei neles. Dois vieram pelo cais e foram mortos por Augusto e o sargento. Os monstros começaram a surgir cada vez em menor número e cada vez mais distantes do cais. Nós não tínhamos combustível para dar uma volta na ilha, e eles perceberam que era suicídio ir para o cais.

-    Acho que vamos ter que descer do barco e perseguir eles - disse Augusto.
-    Olha, se eles não estão nos perseguindo, talvez possamos simplesmente ignorá-los. – Disse Isabela.

A minha mão direita estava numa pistola. Ela começou a esquentar. Meu corpo todo se esquentou. Senti um poder enorme como que fluindo do meu ventre e tomando conta de mim. Eles jamais poderão ser ignorados. Enquanto eu estiver acordado eu só posso odiá-los. Eu odeio esses desgraçados.  Foram os pensamentos que tomaram conta de mim antes de eu perder totalmente o controle sobre mim mesmo.
De repente eu apanhei um dos facões de Felipe e outro meu. Coloquei a pistola num espaço apropriado, concedido a mim no dia anterior por Augusto e pulei do barco pro cais.

-    Caralho! Volta Roberto! – disse o sargento visivelmente transtornado.
-    Volta aqui, Roberto, volta pro barco! – disse Isabela no tom trêmulo.

Isabela sentiu o que estava acontecendo de alguma forma e começou a chorar. Eu tinha consciência de algumas coisas, mas não detinha nenhum controle sobre mim. A sensação era tão boa que eu acabei me deixando levar. Os monstros vieram me atacar berrando e eu também berrei. Degolei vários. Não estava pensando, então não contei. Eu os degolava e depois enfiava a faca nos olhos, nos ouvidos. No pescoço. Eu matei todos os que encontrei perto e depois corri para dentro da ilha. Os gritos das pessoas no barco foram se tornando distantes. Felipe não gritou.
Dentro da ilha outros surgiram. Eram zumbis vestidos com roupas de praia, outros com uniformes, outros totalmente nus. Matei todos sem usar a pistola. De repente eu vi um dos saltadores pulando entre as arvores. Ele não estava atrás de mim, mas ia em direção ao barco. Puxei minha pistola e atirei contra ele. Errei, mas isso chamou sua atenção para mim. Ele desceu até o chão e me fitou por uns segundos parado. Eu corri berrando em sua direção, ao que ele também correu na minha. Apontei a pistola para ele e atirei, mas antes de eu puxar o gatilho ele já havia saído do lugar. Ele se esquivava muito rápido. Eu precisaria de uma metralhadora para poder acertá-lo.
Guardei a pistola e corri na direção dele, ao que ele se aproximou. Tentei golpeá-lo, mas que ele se esquivou com tamanha facilidade que parecia uma brincadeira. Ele tentou me dar uma cotovelada e eu pulei para trás. Tentei atirar nele de novo, e novamente errei. Minha munição acabou. Nosso confronto continuou, e com muita dificuldade eu evitava seus ataques. O que eu fazia basicamente era recuar quando ele me atacava, até que num momento eu bati de costas numa arvore no momento em que ele tentou me atacar. Ele saltou e me deu uma joelhada na cara. Desmaiei.

-    Relaxa...  espantei... tudo bem... mochila...

Eu ouvi fragmentos de algo que não podia entender até que minha visão começou a ganhar nitidez e os sons se tornaram compreensíveis.

-    Qual é o seu nome? Perguntou um homem de uns 45 anos.
-    É... é... Mefistófeles. Meu nome é Mefistófeles. – respondi.
-    Que nome estranho, rapaz. Tem certeza que não é Roberto? É isso que ta na sua carteira.

Ele me mostrou a carteira e eu novamente perdi as forças. Deitei e novamente desmaiei.

Gaia estava diante de mim. A deusa mãe, que gera todas as coisas. Estava bem diante de mim, flutuando. Ela estava calada me fitando.

-    Porque você não fala nada, minha deusa?
-    Porque eu deveria te falar qualquer coisa se você não é fiel a mim?
-    Sim, eu sou fiel a você! Como pode dizer isso?
-    Agora a pouco você me expulsou, e teve que ser derrubado para voltar a me olhar. Você é um insensato.
-    Foi esse anel. Ele me tornou assim. Esse compromisso com Mefistófeles.
-    Ignorante. Não vê que te falta outro anel? Na sua mão esquerda, seu dedo anelar está vazio.
-    Você me daria seu anel?
-    Pensa que o terá sem antes passar por uma prova?
-    Não. Diga que prova eu preciso superar.

Gaia se calou e me abraçou forte. Um abraço apertado, cheio de carinho. Num momento, aliás, aquele abraço me pareceu erótico. Ele despertou tal sentimento em mim.

Acordei.

O homem me carregou até uma mansão que se encontrava no centro da ilha. Me levou até um quarto blindado onde havia mantimentos. Um quarto do pânico ou algo assim. Havia câmeras lá dentro. Aquele quarto era especial porque possuía um segredo. Ali havia um controle que se ativava a um comando especial de voz. Armas robotizadas eram controladas como se fossem um vídeo-game no ponto das câmeras. Aparecia uma mira na câmera. Ela de movia na imagem conforme o braço robô mudava de direção e quando chegava a um ponto fora da câmera, essa também se movia para filmas o alvo. Pelo que eu descobri, ele usou esse mecanismo para atirar no Saltador, que fugiu.
Quando eu acordei, ele estava se preparando para atirar em Isabela. Julgou que ela fosse um morto vivo. Eu vi a mira indo pra direção dela e entrei em pânico. Pulei na direção do homem, que me deu um balão e me jogou numa cama que ficava no canto do quarto. Apontou a arma pra mim.

-    Não atira nela! - Gritei.
-    Que?
-    Não atira na Isabela!
-    Caralho, Mefistófeles, vai dar susto na sua mãe. Puta que pariu, moleque!
-    Mefistófeles?
-    Não é esse o nome que você usa? Ou apelido, sei lá?
-    Não! Meu nome Roberto.
-    Você que falou isso, cara. Desculpa se te ofende, mas quando você estava caído foi esse o nome com o qual você se identificou.
-    Eu falei isso? Que merda!
-    Enfim, são seus amigos esses? Tem certeza de que não são perigosos?
-    Porque seriam?
-    Eu fui atacado por americanos ontem à noite. Por sorte o Jumper e os infectados mataram os agressores. Pessoas não são mais dignas de confiança do que eses monstros.
-    Ouvi falar. A gente veio aqui em busca de combustível. Estamos indo para o sul.
-    Para o campo da ONU?
-    É
-    Esquece cara. Aquilo ali já era.
-    Como sabe?
-    Só quem não tem dinheiro perdeu o acesso à comunicação. Eu ainda to conectado no satélite e tenho acessos às informações secretas que circulam entre os satélites. Eles só estão realizando vôos privados. Eu pretendo fugir usando meu avião particular, se é que não o roubaram.
-    Pode nos levar com você?
-    Eu tenho que levar vocês. Não tenho condições de chegar lá sozinho.
-    Você pilota?
-    Piloto. Com esse avião a gente sai daqui dessa merda. Eu sou dono de uma fazenda nos Estados Unidos.

Deitei na cama novamente. Minha cabeça estava girando. Eu estava ainda muito fraco.

-    Descansa um pouco. Eu vou trazer seus amigos pra cá.
-    Eles não vão caber nesse quartinho.
-    Sem problemas. A parte revestida por aço dessa casa é completa. Tem banheiro, cozinha, sala. Isso é só um dos três quartos.
-    Caralho...

Deitei e dormi.

Eu estava diante dos portões do Tártaro. Ali era a saída do inferno. Aquele lugar, embora fosse estranho, também era agradável. Porque o inferno era uma parte, mas havia outras partes belas. A minha missão era subir até o olimpo, mas antes eu precisaria sair pelos portões do tártaro e aprender uma lição com os mortais. Eu nem imaginava que lição seria, mas sabia que tinha que sair pelos portões do tártaro.
Mefistófeles e eu chegamos diante do portão. Ele me concedeu sua força e eu comecei a esmurrar o portão. Ele cedia um pouco, mas se recuperava. Não havia como sair daquele reinado usando o poder de Mefistófeles.

-    E agora? – perguntei.
-    Só Gaia poderá abrir os portões. – respondeu ele.
-    Mas Gaia não confia no amor que tenho por ela.
-    Como poderia confiar?
-    Ela sabe o que se passa no meu coração.
-    Não. Palavras cruzam pela sua mente, mas as suas ações não correspondem a elas. Você precisa viver as palavras.
-    Você não é Mefistófeles. Quem é você?
-    Não sou. Só tomei essa forma porque é a que receberia sua atenção.
-    Quem é você?
-    De que importam nomes? Chame da maneira que quiser.
-    Um conselheiro do sub-mundo... Daemon?
-    Bem próximo ao Mefistófeles, não acha?
-    Não. É Daemon. Como o Sócrates.
-    Entendo. Já chega de conversas inúteis. Siga o caminho das flores e você chegará até o santuário de Gaia. Naquele santuário você só poderá entrar depois que viver Gaia e não só falar dela.
-    Como farei isso?
-    De que valem explicações? Você já sabe. Não precisa mais aprender por hora. Agora precisa ser. Senão ficará preso aqui até a morte.

Isabela me acordou. Ela me deu um tapa na cara. Estava chorando.

-    O que deu em você? Porque me abandonou? Disse ela.
-    Eu não te abandonei.
-    Me abandonou sim! – ela estava soluçando.
-    Isabela, eu não...
-    Para de falar! – me interrompeu ela. – você fala muito! Mas cadê as atitudes?

Fiquei calado. Não sabia o que dizer. Ela subiu na cama e se deitou comigo, mas depois se levantou. Ela me olhou com um tom que, embora fosse um pouco rancoroso, parecia forçado. Era como se ela não estivesse tão brava comigo, mas quisesse parecer que estava. Queria demonstrar que tinha motivos para me querer a quilômetros de distância naquele momento. Novamente eu fui dormir. Ainda estava fraco. Mas dessa vez eu não me lembro de ter tido algum sonho.
Isabela dormiu sozinha. Depois de um longo tempo em que só dormia comigo, ela voltou a dormir sozinha. A noite passou, e acordei com a voz do dono da casa. Estava explicando seu sistema de defesa pro Rodrigo.

-    Eu não fui descoberto pela fiscalização porque tudo isso permanecia escondido e camuflado. Sempre fui meio neurótico com segurança.
-    Maluco, muito foda. Dava até pra gente ficar aqui ao invés de fugir.
-    Não, eles vão fazer a limpeza em toda a América do sul. Essa ilha está dentro do campo de fogo.
-    O que?
-    Bomba atômica, rapaz. Bomba atômica...
-    Bando de filho da puta! Não sei como vou fazer pra me segurar lá e matar eles.
-    Vamos com seu barco? – perguntei.
-    É. Ele possui mais recursos. Da até pra cozinhar nele.

Rodrigo me olhou. Não parecia irritado, mas não falou comigo.

-    Onde você consegue ter contato com as informações?
-    Desse computador aqui. Mas as transmissões pararam. Suponho que tenham me descoberto e bloqueado meu acesso.
-    Merda. Então estamos no escuro. – disse Rodrigo.

Levantei e saí do quarto com os computadores. Isabela estava dormindo num sofá. Estava encolhida como um feto. A expressão do seu rosto era diferente da que eu estava habituada. Normalmente enquanto ela dormia eu via um olhar tranqüilo. Por mais que o mundo estivesse caindo, ela dormia tranqüila. Mas dessa vez ela parecia estar tendo um pesadelo. Virou a cabeça, estendeu um braço para cima. Pensei em acordá-la, mas estava com medo de isso a incomodar, então só fiquei observando.

-    Ela ficou assim a noite toda. – disse Augusto ao me entregar um copo de leite. – dormimos do outro lado porque tava foda. Ela fala dormindo.
-    Não fala, cara.
-    Dessa vez ela falou.
-    Falou o que?
-    Sei lá. Foi tudo embolado. Mas coisa boa que não era. Digo isso pelo tom de voz. Juro que num momento eu ouvi ela falar não, mas o Rodrigo disse que ela falou anão.
-    Hehe.
-    Vai acordar ela?
-    Não, deixa ela.

No momento em que eu falei uma lagrima saiu pelo rosto dela. Ela parou de se debater.  Levantou num salto e acordou. Olhou pros lados levemente. Não chegou a me ver. Colocou a mão no rosto, e puxou o cabelo para trás. Ele estava bagunçado. Limpou os olhos e se sentou apoiada no sofá. Quando me viu, correu e me abraçou. Foi reconfortante até ela começar a falar do sonho.

-    Ele vai te matar, Roberto. Quer te matar.
-    O que? Quem?
-    O Diabo. Quer te matar. Saia de perto dele. Tira esse anel do dedo.
-    Isa, foi só um sonho, tá? Fica calma.
-    Você não viu que ele tentou te matar ontem? Você está deixando o diabo te possuir.
-    Isso de diabo não existe.
-    Pode ser uma idéia distorcida usada para controle social, mas existe sim. Diabo é uma parte da mente de todas as pessoas. – Disse Felipe entrando na sala.
-    Você não pode o deixar tomar conta. – disse Isabela ignorando a observação de Felipe.
-    Também acho que seja parte da mente. Isabela, não se pode negar o demônio interior. Principalmente num tempo em que ele é necessário, como o nosso.
-    Você não entende que ele vai te matar?
-    Não vai me matar. Não vou deixar.
-    Me promete?
-    Prometo. Não vai me dominar e nem me matar. Mas é parte de mim. Você me aceita assim?
-    Você não é o diabo.
-    Não sou o diabo, é verdade. Mas ele é parte de mim. É só uma parte.
-    Não. Você não é mau. Está enganado.
-    Eu sou pior do que você imagina. Na verdade eu me torno uma pessoa muito melhor perto de você. É como se o que existe de bom em mim fosse despertado por você. Minha capacidade de criar. Sem você eu sou um destruidor. Abandonar você é abandonar o que há de bom em mim e fazer minha vida perder todo o sentido. Acredite. Eu não vou te abandonar.

Ela pulou em cima de mim e me beijou. Fiquei surpreso, mas logo correspondi. Ficamos nos beijando por um tempo. Nem faço idéia de quanto tempo. Perdi a noção do tempo.

-    Porra. Vão ficar se agarrando? – disse Augusto. – eu to aqui.

Eu não ousaria dar ouvidos a ele. Jamais. Só aproveitei o momento. Foi realmente eterno, cada segundo. Eu não sentia só os lábios dela. Sentia um espírito tomando conta de mim. Um espírito bom. Tão bom que eu nem me reconhecia. Eu queria que aquilo durasse pra sempre.
Deitei no sofá com ela. Era pequeno demais pra mim. Meu pé ficava pra fora e o meu pescoço meio torto. Ficamos ali abraçados. Não trocamos uma palavra até o almoço. Augusto e Felipe já haviam saído. Havia ali uma janela no alto. Vidro blindado. Eu pude ver o céu, e meu olhar se fixou lá. Senti como um ser que nasceu no inferno tendo a visão do paraíso. É difícil acreditar que isso sempre existiu e eu vivi todo esse tempo sem conhecer. Toda a minha vida parece ter sido um grande desperdício de tempo até aquele momento. Depois daquilo, daquele beijo, minha vida mudou. Eu mudei. Levantei daquele sofá com dor de pescoço e com um novo espírito.
O cheiro de comida chegou até nós e Isabela quis comer. Ela não bebeu leite, como eu, e estava com muita fome. Num momento me senti responsável por isso e me preocupei profundamente. O copo estava pela metade e ofereci pra ela. Mas estava quente e ela disse que leite não mataria sua fome. Na cozinha, o sargento estava fritando carne. Ele estava com um sorriso no rosto.

-    Trabalhou no rancho, sargento? – perguntei.
-    Nada... Mas eu gosto de cozinhar. Tem algum problema com isso?
-    Problema? Maravilha que você cozinha! O cheiro ta ótimo, cara!
-    Porra, tu ta sorrindo? Roberto sorrindo? Tu tava trepando aí dentro?
-    Não. – disse Isabela.
-    Olha cara, sem querer ser chato. Mas prefiro que você não fale assim disso. Ok?
-    Caralho, educado e os caralhos. Beleza, cara. Foi mal.
-    Mas então, quando sai o almoço? Ta quase pronto. Só falta o feijão.
-    É que a Isabela ta com fome.
-    Ele também. – disse ela.
-    É...
-    Comam aí uma banana. Fica pronto rapidinho.
-    Quer, Isa?
-    Quero.

Peguei só uma banana e dei pra ela. Ela abriu e me deu pra dar uma mordida. Dei uma mordida e ela mordeu também. Eu sentei numa cadeira e ela sentou no meu colo. Deu na minha boca de comer de novo e eu dei uma mordida pequena.

-    Que mordida miserável, Roberto!
-    Você ta com mais fome que eu. Eu geralmente nem tomo café.
-    Então eu vou comer tudo.

Ela foi mordendo a banana e acabou colocando tudo na boca. Ficou com a boca muito cheia e fez uma cara que me custa muito encontrar as palavras pra definir. Só sei que eu nunca ri com tanto prazer antes. Ela tentou me beijar, mas foi impraticável. Mastigou tudo e engoliu.

-    Caramba... Como é que tem banana aqui ainda? No mercado tava tudo estragado. – disse ela.
-    Pois é. O cara aqui tem plantação até de gente. Ele não saía dessa ilha quase nunca. – respondeu o sargento.

Isabela se levantou do meu colo e começou a pegar talheres num armário. Eu peguei pratos e copos. Ela deixou tudo numa instante e forrou a mesa. Coloquei os pratos. Eram sete, mas a mesa era gigante. Não foi nem metade dela. Arrumamos tudo e Isabela sentou na ponta. Pegou garfo e faca e bateu na mesa.

-    Almoço! Almoço! Almoço!
-    Qual é a forma de pagamento? – disse o sargento

Começamos a rir na cozinha e os outros chegaram. Felipe parecia definitivamente não gostar de ninguém. Ele pegou o prato dele e levou pro outro canto da mesa.

-    Vem pra cá, cara. – disse eu.
-    Não posso. – respondeu.
-    Porque?
-    Vocês não vivem no mesmo mundo que eu. O mundo em que eu vivo é habitado por mortos devoradores de carne. O de vocês é cor de rosa. Não posso me sentar com vocês e rir.
-    Não pode rir da própria miséria? – disse eu me esforçando pra fazê-lo se unir a nós.
-    Não há como fazer isso. Eu só poderia rir de verdade se estivesse vivendo uma ilusão. Mas adivinha só, eu não dei a sorte de ter namoradinha no fim do mundo. E adivinha, eu sou miserável. No fundo eu sou exatamente igual a esses monstros lá de fora.
-    Que isso, Felipe. Não fala assim. Você é um menino tão inteligente. – disse Isabela.
-    Inteligente? Eu não sou inteligente. Eu só uso minha mente para criticar. Meu maior motor é o ressentimento. Se eu não fosse ressentido eu nunca nem pensaria. Sem meu ódio por mim e por tudo eu seria exatamente como os monstros lá fora. Um dementado à procura da satisfação. Mas nem eles me aceitam. Ninguém pode me aceitar mesmo, porque eu sou um escroto.

Ficamos olhando pra ele. Eu desisti. Parecia que nada o convenceria de se unir à nós. Ele estava procurando isolamento. Eu arriscaria dizer que ele buscava seu próprio sofrimento. Não consigo entender o motivo. São variados os efeitos que essa calamidade traz às pessoas...

-    Tá servido! Feijão com arroz, omelete, farofa, bife de panela e salada! – anunciou o sargento.
-    Ô maravilha! Um dos primeiros a ser infectado foi meu cozinheiro. Viver aqui só cozinhando porcaria foi duro! Pelo menos eu não morri sem comer alguma comida de verdade.
-    Não fala assim, José! – disse Isabela.
-    O que?
-    Isso de “Morri”. Parece que ta dizendo que vai morrer ou então que já morreu.
-    Ah. É só força de expressão. Esquenta não. Vaso ruim não quebra fácil.

Felipe só pegou feijão, arroz e salada.

-    Será que ele é vegetariano? – perguntou Isabela sussurrando.
-    Você é esperta, em... – disse Felipe. – eu te ouvi. Se por ser vegetariano você quer dizer que eu não como animais mortos, então está certa.

Isabela não respondeu. Pareceu não gostar da forma como ele falou. Ele percebeu e isso visivelmente o incomodou. Continuou falando.

-    Você sabe como a carne que você está comendo chegou até o seu prato?
-    Você ta achando que eu sou burra, é? Pensa que é melhor que eu? – respondeu ela.
-    Se você é burra eu não sei. Não prestei muita atenção em você. Mas com certeza eu não sou melhor do que você. Eu sou um lixo.
-    Não é um lixo. – retrucou ela.
-    Você não viu como eu fui escroto com você?
-    Isso não é você. – disse eu. – Você inventou uma identidade pra si mesmo baseada em alguma informação de fora. Não percebe que bem por trás desse sujeito desprezível, egoísta e ressentido que você acreditar ser existe um herói.
-    Vou lembrar disso da próxima vez que eu salvar o dia, senhor dono da verdade. Até lá eu não vou engolir a sua opinião. Nenhuma certeza existe. Nem a incerteza é certa. Não sou sua ovelha e não vou ouvir sua pregação. Então me deixa em paz.
-    É a sua vida, cara.

Ficamos em silêncio. Aquele diálogo não permitiu que o almoço fosse harmonioso com piadas e tudo mais. Pensei que seria assim, mas Felipe simplesmente não nos deixaria esquecer a desgraça. Sempre trazendo o que é real e podre de volta. Parecia um lixeiro que vai até o lixão e traz todo o nosso lixo para a nossa porta.
Comi tudo, menos salada. Isso pareceu não agradá-lo, mas ele não falou nada. Só soltou o ar pelo nariz dizendo com a expressão facial que o que eu fazia era desprezível.

-    Então, José. Qual é o plano? – perguntou Rodrigo
-    Vamos ir até o casarão no depósito e buscar os mantimentos. De lá, levamos o máximo que pudermos pro iate e seguimos até o meu avião.
-    Onde está seu avião? – perguntei.
-    No Rio Grande do Sul.
-    Me responde uma coisa? – disse o sargento..
-    Sim, claro.
-    Desde quando você sabia da infecção?
-    O que?
-    Ta de sacanagem, né? Você tem uma casa totalmente revestida com aço, metralhadoras escondidas, mantimentos, e um avião na única zona segura do Brasil.
-    Não é uma zona segura. Não mais.
-    Beleza, mas e o resto. Porque você tem isso tudo?
-    Olha, eu... sou meio neurótico com segurança.
-    Vou dizer porque. – disse Felipe. – ele participou disso tudo.
-    Como é? – disse José vermelho.
-    Não sei o que vocês sabem disso, mas eu vi de perto como começam essas pragas. Esses monstros que saltam saem do nada e começam a atacar. Depois as pessoas voltam e ajudam na destruição. Mas essa ilha é bem distante do litoral e eu duvido que o monstro tenha simplesmente capturado um barco pra chegar até aqui. O iate está limpo e esses monstros não nadam. Esse monstro surgiu aqui. Da pra ver que eles também já foram pessoas normais. Não sei em que mundo vocês vivem, mas no meu parece óbvio que isso é uma arma biológica. Imaginem só: uma forma de guerra que não só ataca as pessoas, mas faz com que elas mesmas se destruam. Esse monstro foi criado aqui, da mesma forma que os outros espalhados por aí. Seja como foi que isso aconteceu, deve ter sido fruto de pesquisas tecnológicas. E um homem com tanto dinheiro poderia dar prosseguimento a pesquisas numa ilha como essa. Não me surpreende que ela seja tão defendida. Usa jovens sensuais para dizer que aqui só se faz festas, mas tem metralhadoras robóticas por todos os lados. Com certeza ele estava se preparando pra essa limpeza. Agora que vão jogar a bomba atômica aqui e, por mera coincidência, ele sabe o que o governo americano planeja, ele quer fugir com o avião dele que fica na mesma região onde a ONU está resgatando refugiados. Numa boa, tem que ser muito idiota pra não perceber que esse cara está envolvido na merda toda.

Todos começaram a rir, menos José. Foi uma risada um pouco compulsiva. Ele demorou um pouco para começar a rir.

-    Caralho! O maluco fica calado direto. Quando começa a falar solta uma bíblia. – disse Augusto.
-    Não. O que ele falou tem um pouco de sentido. Só não gosto disso de sempre esperar o pior das pessoas. - disse eu.
-    Diz aí, sabidão. Você já escreveu seu livro de teorias da conspiração? – disse Rodrigo.
-    Não é uma teoria. Você é um idiota e não entendeu nada do que eu falei.
-    Sim. Claro. Você é um sábio.
-    Em todas as época, os sábios sempre disseram coisas parecidas. E em todas as épocas, os tolos, como você, fizeram coisas parecidas: exatamente o contrário do que os sábios falam. Todas as pessoas são desprezíveis.
-    E isso inclui você, né?
-    Sim.
-    Desde quando você acha isso? – perguntou Isabela
-    Isso o que?
-    Isso do José.
-    Desde ontem à noite.
-    E porque você não demonstrou nenhuma raiva? Aliás, porque você ainda não demonstra raiva dele, se acha que ele tem uma parcela de culpa?
-    Quem sou eu pra ter raiva dele? Eu não sou melhor do que ele pra julgar. Provavelmente se eu não fosse miserável como sou, se eu estivesse no lugar dele, eu faria exatamente a mesma coisa.
-    Será? – perguntei.
-    Vou te contar. Ô cara desagradável. – disse Augusto. – só abre a boca pra arrumar briga. Eu gostava mais dele enquanto estava quieto

Terminamos de comer em silêncio. Todo o falatório acabou esfriando a comida, mas ainda assim ela ficou ótima. O sargento realmente tinha talento pra cozinhar. Cada um levou seu prato pra pia e comecei a lavar a louça.

-    Não precisa fazer isso, garoto. – disse José. - Amanhã vamos embora. Não voltaremos mais pra precisar de louça lavada.
-    Eu quero lavar. Eu medito enquanto estou lavando.
-    Hahahahaha! To te imaginando na posição de meditação lavando a louça. – disse Rodrigo. – então quer dizer que todo o cara que leva pratos no restaurante fica zen?

Eu o ignorei e liguei meu mp4 na tomada ali perto. Gosto de poder ignorar todos os sons, e é mais fácil fazer isso quando todos os sons de fora são superados pelo som do fone. Isabela foi pra sala e pegou um livro na estante. Fiquei lavando a louça e pensando no que Felipe disse. Não pareceu absurdo pra mim. Talvez negativo, mas não deixava de ser lógico. De qualquer maneira, José precisava de nós, então não deveria nos danificar. Eu também não sentia raiva dele. Mas não por me desprezar. Claro que eu tenho meu lado negro, meu demônio interno, mas eu só estava de bem com a vida. Não tinha como eu odiar qualquer pessoa. De qualquer forma eu estava preocupado.
Passei pela sala e Isabela estava ocupada. Ela mergulhou num livro de cabeça e eu não quis interromper. Lembrei dos livros que perdi na estrada. Eram ótimos...
Fui pra sala com as telas e computadores. José estava com Augusto, Rodrigo e o sargento.

-    Porque você não matou todos logo com essas armas? – perguntou Augusto.
-    Não tem como. Eles não aparecem mais no campo de visão das câmeras. – respondeu José. – parece que eles perceberam isso. O Jumper só apareceu na frente da câmera uma vez, que foi quando ele atacou aquele moleque lá.
-    Que porra é essa de Jumper? – disse o sargento.
-    São aqueles monstros que saltam nas arvores.
-    De onde você tirou esse nome?
-    É como eles os nomearam, os americanos chamavam eles assim.

José nos mostrou vídeos desse Jumpers atacando diversas cidades através do mundo. Todos eram registros de destruição em cidades de países pobres.

-    Eles formaram uma equipe de extermínio de Jumpers. Descobriram que essas criaturas são atraídas hipnoticamente por esferas que se formam no cérebro dos infectados. Quando eles removeram uma esfera no campo, um Jumper invadiu, roubou a esfera e fugiu. Filmaram ele comendo a esfera e explodindo. Parece que quem quer que tenha criado isso não tinha a intenção de se auto-destruir. Essas coisas têm um ponto fraco.
-    Tenho uma dessas esferas comigo – disse eu.

Olharam pra mim surpresos. Não perceberam que eu estava li.

-    Eis aí um motivo para ele se arriscar a entrar no campo de visão da minha metralhadora.

Parecem tanto com Felipe, esses Jumpers. Eles vivem evitando sistematicamente os riscos, são inteligentes. Mas aí se deparam com algo que os destruirá de dentro para fora e perseguem essa coisa. Querem se implodir. As pessoas realmente me confundem. Buscam sua própria destruição e pensam que isso é o melhor a se fazer. Como isso pode ser bom? Mas como eu posso imaginar conhecer o outro se nem a mim eu conheço? Se eu sou uma distante e embaçada imagem, como posso querer entender o outro?

-    Então é por isso que ele estava até dormindo com essa mochila nas costas. Mostra aí a esfera. – disse Rodrigo.

Saí do quarto imerso em pensamentos e voltei pra sala. Isabela fechou o livro.

-    Tudo bem com você? – disse ela
-    Não pareço bem?
-    É que até um minuto atrás você parecia tão alegre.
-    Eu só to abismado. Sei lá.
-    Não fica assim.

Isabela me abraçou. É tão pequena em relação a mim. A cabeça dela fica no meu peito. Parece que o ar saindo das narinas dela entra diretamente em mim. Dá calafrios.

-    Ô Roberto. Ta planejando o casório aí? Bora, porra! – disse Rodrigo.

Abri minha mochila e tirei a esfera de lá. Estava quente. Deixei cair no chão. Ela foi rolando e Rodrigo correu e a parou com o pé.

-    Não é pra estragar a parada, né?
-    Ta quente, porra. Não enche.
-    Hehe. Isso porque o sargento elogiou sua educação. Você é uma farsa.
-    Certo, certo. Leva lá essa esfera. Não quero saber dela.
-    Esfera... Não é mais fácil falar bola?
-    É, é. Parabéns. Boa sorte na sua investigação científica e classificação semântica.

Rodrigo murmurou alguma coisa. Acho que me chamou de idiota. Tanto faz. Fui pro sofá e me deitei com Isabela. Era um sofá cama. Abrimos e nos deitamos. Felipe saiu da sala com um livro e foi para a cozinha. Era um livro enorme. Isabela deitou com a cabeça no meu peito. Ela acabou dormindo. Sempre pegava no sono quando estava abraçada quieta comigo na cama. Ela adora isso. O olhar voltou ao estado tranqüilo de antes. Olhando pra ela daquela maneira eu esquecia de tudo. Parecia tudo tão tranqüilo nos olhos dela. Vai ver eu a salvei acidentalmente pra ela me salvar acidentalmente. Vai ver não foi acidente. De todas as maneiras, é bom. Acabei dormindo também.
Anjos são o que precisamos. Anjos para contrabalançarem os demônios de dentro. Encontrei um. Talvez o anjo tenha me encontrado. Que diferença faz? O mundo está caindo aos pedaços e meus fragmentos se aproximam. É tortuoso, o caminho da vida...

2 comentários:

Duan Conrado Castro disse...

- É a sua vida, cara.
Eu acrescentaria o seguinte:
- E dai?


revisão ortográfica

Caralho, Mefistofeles, vai dar susta na sua mãe. Puta que pariu, moleque!
portões de tártaro
sair pelos portões to tártaro.

Silas disse...

hehehehehe

Será sempre uma aproximação...

Erros corrigidos...