quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Capítulo 14


As coisas mais importantes da vida passam diante dos olhos de quem busca um sentido. Elas passam despercebidas. Por que o homem busca apenas fora de si a iluminação, mas no mundo só vemos trevas. Com a idéia de que não pode se iludir, o homem busca ilusões. Com a idéia de que deve se iluminar, o homem se mergulha nas trevas. Tal é o fardo da humanidade.

Felipe subiu no telhado e olhou as pessoas se destruírem. Com seus olhos fixos, só havia um pensamento em sua mente. Isso não podia ter acontecido. Ele nunca devia ter nascido. Maldito o impulso dos seus pais que o colocaram no mundo por acidente. Tudo é desordem, a natureza é perniciosa. É o destino da humanidade encontrar a destruição. É o que a humanidade merece.
Ele decidiu descer e deixar os monstros o devorarem. A vida nunca teve sentido, de qualquer maneira. Acabar com ela seria por fim ao sofrimento. Ele pegou sua filmadora e gravou uma fala.

-    Eu não grito apavorado. Já vivi o bastante na beira do abismo para saber lidar com a dor de existir. Essa dor que parece não tem fim. Mas eu não tenho forças para enfrentar essa vida. Eu sou um ponto fraco da natureza doente. E os mais fracos morrem.

Ele saiu e se deparou com o monstro que começou tudo aquilo. Caiu justamente do telhado onde ele estava. Quer dizer que, querendo ou não, ele morreria. Irônico. O monstro parou diante dele e o avaliou. Diante de seu olhar vazio, o monstro deu um grito estranho. Parecia o estar convocando. Vai ver pensou que ele era um zumbi. Ele continuou parado diante do monstro. Esperando a morte, o alívio. O monstro continuou o convocando com os berros com os quais ele costumava convocar outros infectados. Um deles, ali perto, atendeu o chamado. Felipe quis acelerar o processo e falou. Falando ele demonstraria que não era um zumbi.

-    Eu não posso ser convocado. Eu não sou um de vocês. Na verdade eu não sou um de nada.

O monstro o fitou com olhar curioso, e ele acabou ficando também curioso. As feras não o atacavam. Por algum motivo elas simplesmente o olhavam. Queria entender o que ele era.
Antes de ele voltar a falar um barulho de carro. Era um fusca. O carro do pai dele. Eles chegaram do passeio. Outro carro os seguia. Estava atirando. Um carro militar. Felipe correu em direção ao carro e abriu a porta do passageiro. Sua mãe caiu na rua. Foi baleada. Saia sangue pela boca dela. Ela não falou nada, mas tinha os olhos cheios de lágrimas. Só uma escorreu. Ela balançava a cabeça, como quem que negar alguma coisa. Não aceitava a morte? Felipe não teve tempo para pensar. Um bala penetrou a janela dos fundos do fusca e matou seu pai. Seu irmão saiu do carro e correu para dentro da loja. Felipe ficou parado. Talvez os militares o ajudassem a morrer. Mas o monstro líder atacou os militares. Eles quase foram cercados e fugiram. Seu irmão subiu no telhado e o monstro subiu até lá num salto. Acertou o rosto dele com o cotovelo. O rapaz girou e caiu do telhado de cara no chão. Era difícil dizer se foi a queda ou o impacto que destruiu o rosto dele. Estava irreconhecível. Quase: era posssível identificar pelo sinal que ele tinha perto do ouvido. Mas quem o identificaria? Todos estavam mortos!
Ele não era particularmente ligado à sua família, mas vê-los morrer aumentou o vazio dentro dele. Aumentou o sentimento de miséria que ele sempre carregou consigo desde que descobriu que a existência não tem nenhum sentido. Que tudo é banalidade.

Fernanda e André passaram pela estrada e, depois de uma curva fechada, receberam rajadas de tiros. Os dois pneus da frente furaram e o motor foi danificado. Fernanda virou o carro para a esquerda e capotou. O carro estava bem rápido e deu varias voltas. Acabou de cabeça pra baixo e virado para o lado contrário do qual original. Talvez por milagre, os cintos e os airbags os protegeu. Nem desmaiaram.
Fernanda saiu pelo lado do motorista, que ficou para o lado da floresta, e André pelo outro, que ficou de frente para aquela estranha fortaleza. André esteve ali a três dias e não havia nada semelhante.

-    Hey, look! The bastard managed to survive!
-    Well, shoot him, then!

Os soldados abriram fogo contra André e acertaram seu joelho direito. Receberam um chamado interno e saíram do muro. Fernanda o puxou e começaram a andar pela floresta. Ele era muito pesado, mas ela não desistiu. Ele só conseguia se apoiar com a perna esquerda. Sangrava muito. O sangue caia na areia e era absorvido por ela. Estavam perto da praia.
Depois de algum tempo Fernanda não agüentou e caiu com André.

-    Você consegue se levantar com a minha ajuda?
-    Eu não sei...
-    Vamos. Você vai conseguir!
-    Certo. Vamos tentar.

Fernanda se levantou e André ficou apoiado no joelho esquerdo. Usou os braços para fazer um impulso e se pôs de pé. Andaram mais um pouco e encontraram uma cabana. Estavam no meio da floresta. André, naquele ponto, já havia perdido muito sangue. Estava fraco.
Fernanda o colocou numa rede na varanda e entrou na cabana. Apesar de parecer em más condições quando vista de fora, por dentro ela estava totalmente em ordem.
Na verdade, o aspecto da cabana parecia demonstrar que ela havia sido reformada recentemente. Tudo em ordem. A geladeira estava cheia de comida e no banheiro ela encontrou um kit de primeiros socorros. Ela não sabia usar o kit, mas usou a criatividade. Voltou até a varanda e percebeu que já havia uma poça de sangue no chão. A rede estava encharcara de sangue. Desesperada e com a mão tremendo ela derramou álcool na ferida, o que arrancou de André um grito terrível. Terrivelmente alto para uma situação em que se procura um esconderijo. André já estava tremendo, frio. Ele não falava. Ela começou a ouvir berros de infectados. Não sabia se ficava na cabana escondida ou se fugia. A cabana seria facilmente invadida e ela não sabia onde estava. Estava perto do porto, mas não sabia se teria que andar por horas. Ela não teve tempo para pensar. Um infectado surgiu do meio do nada. Ela teve que correr, e André se moveu. Olhou ao redor e percebeu a situação. O infectado subiu na varanda e André se agarrou na perna direita dele, ao que ele caiu e se virou para mordê-lo.
Isabela correu pela floresta. Ela não sabia para onde estava indo, até que ouviu um grito incomum. Não era um berro de socorro, como se ouve normalmente, mas um chamado.

-    Seus idiotas! São cegos? Estou aqui! Estou pronto para ser destruído!

Ela imaginou que seria um louco ou um traumatizado, mas era melhor estar perto dele do que de um infectado. Ela correu na direção do som até que foi bloqueada por um muro. Era o quintal de trás de uma casa. Na verdade, era uma pousada. Ela reconheceu por um enfeite pendurado na varanda do segundo andar. Um papagaio ou Arara. Ela não sabia qual dos dois. Naquele momento isso não tinha importância, mas os pensamentos dela se fixaram no papagaio. Talvez uma forma de fugir um pouco da realidade.
Ela viu a estrada e percebeu que os monstros estavam seguindo um carro, que, ao chegar no local e perceber que estava infestado, derrapou e deu meia volta. Um monstro mais habilidoso pulou em cima do carro e começou a dar cotoveladas no teto. Ela aproveitou e passou pela estrada. Chegou no bairro onde encontraria o barco. Ainda havia um parado. Sentado em cima de um fusca.
Fernanda jogou uma pedra na direção dele, mas errou. Só quebrou o vidro do carro. O suposto infectado correu na direção dela. Ele não corria com ódio no rosto. Na verdade era tristeza disfarçada de ódio. Ela percebeu que não se tratava de um infectado e permaneceu parada. Ele parou diante dela com um olhar intrigado. Pegou a câmera que tinha pendurada no ombro e apontou para ela.

-    Acabo de me deparar com outra sobrevivente suicida. Realmente não me surpreende que alguém que ainda tem alguma percepção da realidade seja suicida. Quem percebe a realidade deve perceber como ela é deprimente.
-    Eu não sou suicida. Você não me enganou. Sei que não está infectado. Eu já sabia pelo seu olhar. Eu te ouvi de longe, pedindo para ser assassinado. Por isso que vim até aqui.
-    Veio me salvar?
-    Te salvar de si mesmo, talvez. Mas no fundo eu só não queria ficar sozinha.
-    Que pena que queria isso.
-    Por quê?
-    Porque eu sou um deles. Você está sozinha sim.
-    Mas você está falando. Não é um deles.
-    Não está vendo como meu corpo é debilitado. Eles só não quiseram me transformar porque não me consideram digno. Mas no fundo eu sou exatamente como eles. Quero correr por aí consumindo as coisas. Só não posso, e por isso que não faço.
-    Ta dizendo que eles não te atacaram?
-    Não. Eu olhei no olho deles. Não me atacaram.
-    Talvez você seja bom demais. Vai ver você foi protegido.
-    Bom demais? Você não me conhece. Por isso que imagina que pode existir algo de bom em mim. Eu sou só ressentimento, solidão, vazio. Na verdade até o fato de que eu não sou um zumbi me deprime. Nem os zumbis me aceitam. Nem com as feras eu posso encontrar companhia, porque não faço companhia nem a mim mesmo.
-    Pelo menos sincero você é. Diz o que pensa.
-    Admitir que eu sou desprezível não me torna uma pessoa melhor. Aliás, nenhuma pessoa é boa de verdade. Nossa raça merece essa destruição.
-    Mas você foi poupado. Porque?
-    Eu já disse. É porque eles não precisam de ajuda de um debilitado ressentido como eu.

Fernanda ficou confusa. Nunca viu na vida uma pessoa como aquele rapaz. Os monstros voltaram e ele puxou o braço dela. Entraram num mercadinho que ficava ali perto. Ele puxou o braço dela e colocou ela escondida. Fechou a grade e abriu uma parte. Saiu e fechou.
Lá de dentro, Fernanda viu os monstros o cercando. Ele enfiou a mão na boca do líder.
-    Desgraçado! Não é isso que você faz? Morda! Maldito!

O monstro tirou a boca da mão dele e cuspiu para o lado. Deu um chute nele, o que o lançou contra a entrada fechada do mercadinho. Pulou para a estrada e correu na direção à base na estrada. Depois de uns instantes, ouviram tiros. Um helicóptero deu cobertura à base e líder fugiu, deixando os infectados desorientados. Correram e se espalharam.

-    Precisa de mais alguma prova de que esses monstros não se interessam por mim?
-    Acho que você está interpretando da forma que lhe agrada.
-    Acha que eu gosto de ser desprezível.
-    Se você gosta eu não sei. Mas por algum motivo você quer ser.
-    Então mostre de que outra maneira a atitude do monstro pode ser explicada. Acha o que? Que Deus está me protegendo? Vou te dizer, eu tenho blasfemado contra deus praticamente todos os dias da minha vida a três anos. Na verdade, antes de eu perceber que Deus não existe eu o odiava por ter me criado.
-    Como você foi ficar assim? Qual é o seu nome?
-    Meu nome é Felipe. Eu nasci assim.
-    Quer dizer que você é assim desde pequeno.
-    Não. Quando eu era criança eu não tinha consciência. Um dia eu acordei morto. Percebi que nada na vida faz sentido. O suicídio se tornou um dos principais temas da minha vida desde então.
-    O que aconteceu nessa época?
-    Que foi? Quer dar uma de analista no fim do mundo? Vê se me deixa em paz! Eu não quero ser ajudado, não quero ser salvo! Não vou aceitar a ilusão cor de rosa de que o mundo está bem. Olha lá pra essa merda de rua. Está cheia de sangue e cadáveres! Sangue é cadáveres, entendeu? Não flores!
-    O que eu pensei em dizer é que os monstros não te atacam porque sabem que você é imune. De alguma forma, sua natureza tão desprezível torna você imune e eles sentem isso. Por isso sua mão tem gosto ruim: porque você não pode se transformar num deles.
-    Na verdade sua visão é bem plausível. Eu percebi algo interessante sobre esses monstros. Eles parecem ser motivado de forma proporcional à que os indivíduos normais eram. Noutras palavras, os mais esforçados enquanto vivo se tornam os zumbis mais velozes, resistentes e tudo. Eu não tenho a muito tempo alguma motivação para existir. Eu não seria um zumbi como eles porque o meu espírito não é tão controlado pelos impulsos estúpidos que motivavam as pessoas antes de se infectarem.
-    Não foi isso que eu disse.
Ficaram em silêncio por um longo. Não sabiam o que falar um para o outro. Felipe colocou em prática seu discurso de que ele não era companhia para ninguém. Ele praticamente não existia. Fernanda se arriscou a iniciar outra conversa enquanto comiam, já perto de escurecer.

-    Eu acho que você só precisa de amigos.
-    Que amigos? Quer que eu saia lá fora e faça amizade com aquelas feras? Quer que eu pare diante deles e explique que eles precisam parar de devorar os outros. Que precisam para de obedecer os líderes? Aliás, quer que eu me torne amigo dos líderes? Eles não são capazes de me entender, o mundo estava destruído.
-    Eu poderia ser sua amiga?
-    Não esperou eu terminar de falar. Não é só porque eles me rejeitam que eu não posso ter amigos. Mesmo para pessoas vivas eu não sou bom amigo. Porque eu despertei para o vazio. Um vazio que as pessoas não suportam. Porque eu sei verdades que as pessoas sentem, mas não admitem.
-    Acho que você está errado. O vazio não é a verdade. É a sua verdade. Só isso.
-    Então o que eu deveria fazer? Aceitar a sua verdade e viver uma farsa. Não, não posso fazer uma coisa dessas. Me desculpe, mas não posso.
-    Fora o fato incômodo de que você se odeia, não vejo motivo para você não ser um bom amigo. Parece ser inteligente e capaz de conversas produtivas.
-    Eu já te disse que conversas comigo não são produtivas, mas destrutivas, porque meu pensamento se orienta por ressentimento. Mas não é esse meu único defeito. Vou te mostrar. Qual é a sua religião?
-    Sou cristã.
-    O cristianismo é a maior farsa da nossa sociedade. É a muleta com a qual os coxos andam. É de um lado a expressão da miséria real, e de outro o protesto contra ela, e a religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espírito. É o ópio do povo.
-    Marx... ele está errado. Você precisa Sentir Deus para entendê-lo.
-    Pois eu nunca senti e digo que isso é uma invenção. É mesmo um soluço da criatura oprimida. Uma mentira inventada explicitamente para tornar a existência suportável.
-    Não. Você ainda vai sentir em você. Ainda vai sentir Deus. Aí você vai entender melhor.
-    Certo, mas até lá, me poupe de suas tentativas de me salvar de mim mesmo, me transformando numa cópia exata do que você é. Você não entende a profundidade do meu problema. Parece que está condenada e nunca me entender.

Os dias foram passando enquanto eles esperavam algum tipo de mudança. Fernanda encontrou alguns livros didáticos perto do caixa. Parece que quem quer que fosse o empregado do caixa, gostava de estudar no trabalho. Achou um livro de biologia e ficou lendo, e depois observando os monstros lá fora. Parece que aquilo não era possível, que realmente não podia estar acontecendo. E, no entanto, os mortos continuavam andando conforme os dias se passaram. Felipe estava totalmente dedicado a documentar o comportamento do líder. Depois de um tempo observando gravou mais um vídeo na sua câmera. Estava economizando a bateria.

-    O aspecto do terno dessa fera é de que ele custou muito dinheiro. É irônico que o líder dos mortos tenha sido, em vida, provavelmente um líder dos vivos. Há diferenças? Ele não possui expressão facial, é apenas um guia para os mortos. É ainda mais distante do ser humano do que os mortos comuns. Não possui qualquer ferida, o que indica que sua infecção se deu de maneira diferente. Eu me pergunto se alguém o infectou. É realmente pouco provável, tendo em vista a sofisticação da infecção, o que deveria exigir um processo no mínimo complexo de infecção. Provavelmente o próprio indivíduo, rico, consentiu. Talvez ele realmente soubesse que, se submetendo a isso, ele se tornaria um infectado, mas ao menos não tão desprezível quanto os outros. Ele me olha com um algo de confusão no olhar. Acho que quando paramos um diante do outro, segundos antes de ele ir embora, é o único momento em que ele tem alguma expressão facial.
-    Porque você se dedica tanto a observar essas coisas? – Perguntou Fernanda.
-    Porque ele é um bom objeto de desprezo. Algo que estou autorizado a odiar. Não que eu me importe com autorizações e moral num mundo como o nosso.
-    Acho que você queria resolver esse problema. Queria encontrar uma forma de recuperar os mortos.
-    Colocando palavras na minha boca e intenções no meu coração, é? Não há como recuperar essas coisas. Você está lendo esse livro de biologia e que também se ocupa de olhar os infectados deveria saber.
-    Mas isso é uma coisa que você gosta de fazer. Disse que detesta tudo, não é?
-    Eu vivo tentando me convencer a continuar fazendo isso. Faço isso justamente porque não gosto disso. Estou de saco cheio de você tentando me convencer de que eu sou você. Vai tomar no cu!

Os dias passaram devagar. Vazios. As vezes chovia, as vezes eram dias de sol. O líder e os mortos saíram da cidade. Perseguiram um carro militar e passou pela estrada. Ficou deserta.

-    Podemos sair amanhã de manhã com o barco. – Disse Fernanda mostrando a chave do barco
-    Sair pra onde?
-    Não sei. Talvez alguma ilha esteja sem infectados e possamos viver em paz.
-    Gosto da idéia. Sempre quis sair desse buraco mesmo...
-    Nossa! Você concordou comigo! Achei que ia brigar comigo porque falei contigo.

Felipe não respondeu. Foram dormir. Como sempre, em cima de papelões. Eles já estavam acostumados a viver daquela maneira. Tão acostumados que aquilo parecia natural. Viver presos num mercadinho, olhando pra feras ou simplesmente para ruas vazias enquanto se dorme no chão imaginando que será a pessoa que está dando seu ultimo grito naquela noite. Parece que quase todas as noites alguém morria perto e podiam ouvir o berro. Mas não sabiam se eram os gritos de dentro deles. Talvez estivesse loucas, quem diria o contrário. Felipe imaginava que ele poderia ser uma das personalidades de um louco internado num hospício.

O cavaleiro da morte se mostrou em meio à neblina. Fernanda já o conhecia. Ele anunciava mortes. Ficou assustada ao vê-lo de novo, porque da ultima vez que ele veio, foi para anunciar a morte de sua mãe, e no dia seguinte ela teve um ataque cardíaco fatal. Ela não queria ficar sozinha naquele mundo, e por mais que Felipe às vezes fosse desagradável, ela sabia que ele tinha um bom coração. Ele só precisava perceber isso. E o cavaleiro poderia esta chegando para anunciar a morte dele.

-    Filha das forças criadoras do universo. Venho lhe trazer uma mensagem.
-    Diga-me, meus ouvidos se dirigem a ti com esperança de notícias boas.
-    Receio que minha função não seja propriamente trazer boas notícias.

Atrás dele a neblina se abriu e ela pode ver um rosto. Era aquele anjo que sempre falava com ela, quando ela tinha sonhos assim. Seu anjo da guarda, que a guiou. Ela se acalmou quando o viu. Só achava estranho que o cavaleiro da morte estivesse trazendo a notícia. O anjo não falou, mas fez um. Um convite, um chamado. Ela sentiu um misto de paz e angústia.

Acordou assustada. Sua intuição lhe mostrou o significado daquele sonho. Era profético. Ela foi até Felipe e colocou a chave do barco no bolso dele, ao que ele acordou assustado.

-    Que porra é essa?
-    Você, assustado?
-    Eu tava tendo um pesadelo.
-    Ah.
-    Não muda de assunto. Porque você colocou essa chave no meu bolso?
-    Porque eu fui convidada pelo anjo e me juntar a ele.
-    O que?
-    Eu vou morrer em breve. Pode ser antes de chegarmos no barco. É mais seguro pra você eu deixar a chave contigo.
-    Você não vai morrer! – disse Felipe visivelmente transtornado. – abandone de uma vez essas crenças idiotas!
-    Não são crenças. Não acredito, eu sei. Não é idiota.
-    Então prove.
-    Escuta, só fica com essa chave, ok?

Ele hesitou, mas acabou aceitando a chave. Se levantou e saiu do mercadinho. Subiu no telhado. Fernanda acabou pegando no sono enquanto esperava ele voltar. Lá de cima ele viu a praia. A água estava calma naquela noite, e o céu estrelado. Provavelmente o dia seguinte seria de sol. Ele se deitou no telhado e deixou os sentimentos fluírem como ele geralmente não fazia. Sentiu angustia, algo com o que ele estava acostumado, mas era diferente. Ele estava com medo de Fernanda realmente estar em perigo. Acabou percebendo nela alguma companhia. Sempre quis evitar qualquer tipo de apego, mas não poderia negar seus instintos. Imaginou que havia algo de desejo sexual nessa angustia. Afinal, ela era bem bonita. Desceu do telhado e andou pelas ruas sem destinos. Foi virando esquinas aleatoriamente e se deparou com uma peixaria. O fedor de podre era horrível, mas ele entrou. Pegou dois facões e saiu. Serviriam para protegê-la. Mas depois de um instante se assustou com os facões. E se ela morresse por um acidente com eles?
Ele não se reconhecia mais. Não imaginava como podia se preocupar tanto com uma pessoa se nem pelos parentes ele tinha tamanha consideração. E como ele não havia percebido aquilo antes? Talvez ele estivesse inconscientemente projetando sua mãe nela. Talvez fosse um reflexo dos primeiros desejos incestuosos da infância. Quem sabe Freud poderia explicar aquele carinho repentino. O mais provável, considerou ele, é que eu só quisesse comer ela e não soubesse por estar negando e reprimindo isso para o inconsciente. Na verdade não foi ele que buscou a faca e quis proteger ela, mas apenas sue pênis. Nas ruas ele achou um cadáver de soldado. Tinha uma pistola. Seria útil também, mas ele quis as facas. Não sabia porque.
Voltou e colocou a pistola na cintura dela. Ela acordou.

-    Que é isso? - Levantou ela assustada. – Nossa Felipe, achei que estava tentando se aproveitar de mim!
-    Não. Só estou enfrentando seu Deus. Achei uma pistola pra você.

Fernanda olhou para a pistola sem falar nada por pelo menos dois minutos. Felipe se levantou e subiu para o telhado de novo. Uma evidência conclusiva do impulso inconsciente de querer comer a companheira. Ela havia percebido esses impulsos com maior eficácia e no menor toque já pensou em abuso sexual. Antes dele, ela já havia percebido com sua intuição feminina sobre o que se passava na mente dele. Ele pegou no sono no telhado.

Ele estava numa igreja. Fernanda estava com ele. Cantavam alguma musica que ele não podia distinguir, mas ela trazia enorme paz a ele. Saíram de lá depois de cumprimentar todos. Todos gostavam deles. Não havia nenhum zumbi por perto. As mulheres mais bonitas pareciam olhar para ele desejosas. Fernanda, arrumada, estava linda. Ela estava mais linda do que todas as outras mulheres. Uma limusine surgiu na porta e os dois entraram. Havia latinhas e comemoração do casamento.

Ele acordou com um barulho de tiro vindo da base. Estava deitado com Fernanda e com um volume considerável nas calças. Por sorte, ela ainda estava dormindo. Estava abraçada com ele, mas não despertou quando ele se soltou. Ao invés de pensar sobre como ele foi parar ali, ele saiu para ouvir os tiros. Mais tiros foram ouvidos. De repente ele teve uma intuição funesta: ele não seria poupado no caso de uma taque em massa. Um grupo grande de monstros o mataria sem nem perceber. Eles destruiriam a ele e a Fernanda. FERNANDA!
Acordou ela com pressa para dar o aviso.

-    Que foi, querido?

Ele não conseguiu falar. Ela o chamou de querido e ele enrubesceu instantaneamente. Caiu sentado um pouco atônito, mas logo se recuperou e explicou sua intuição.

-    Viu? Você não tinha como saber isso. Nunca testou. Você só sabe. É assim que funciona.
-    Ta bem, mas temos que sair daqui. Temos que ir pro barco. Vamos!
-    Espera, Felipe. A gente tem que arrumar as coisas. Calma aí.
-    Calma nada. Estamos em perigo!
-    Vamos comer alguma coisa. Sair daqui de barriga vazia não vai ajudar.
-    Ta bem.

Pararam e comeram biscoitos com refrigerante quente. O que sobrou. Felipe comeu rápido, como sempre fazia, mas Fernanda não tinha pressa. Saboreou o biscoito como se fosse o último. Isso incomodou Felipe profundamente.

-    Para com isso, Fernanda. Você não vai morrer.
-    Todos vamos morrer, Felipe. Temos que viver os momentos sempre assim. Como se fossem os últimos.
-    Olha, talvez seu sonho tenha sido só uma lição. Talvez seja pra você aprender a viver cada momento.

Ele não acreditava naquilo. Na verdade ele pensava que no fundo ela queria morrer e que era essa a mensagem do sonho. Porque os sonhos eram a manifestação dos desejos. Talvez fosse por isso que ele gostava dela. Porque eram semelhantes no fundo. Na verdade, na essência, ambos eram vazios. Ela que não sabia disso ainda. Por isso era bom estar perto dela. Porque ela entendia. Falando essas coisas ele só estava tentando fugir da realidade, do sentimento de medo que ele tinha. Ela não respondeu nada a essa afirmação.
Começou um tiroteio contínuo. Parece que a quantidade de infectados era grande, como ele havia imaginado. Os tiros não paravam até que eles ouviram o som dos carros dos militares saindo.

-    É agora, Fernanda. Se não fugirmos, os militares ou os monstros nos atacarão.

Nesse momento um carro parou na estrada. Felipe saiu e viu um soldado voltando para o carro. O carro partiu na direção do porto. Ele percebeu que havia outro carro, e que em meio aos militares havia dois civis. Aliás, olhando de perto, percebeu que eram militares brasileiros. Pela primeira vez na vida, sentiu experiência.

-    Vamos, Fernanda. Eles podem no ajudar se ajudarmos eles.

Ela não disse nada. Só saiu do mercado. Todos perseguiam o som. Felipe quis gravar aquilo com a câmera, mas não pôde. Só correu em direção ao porto. Quando virou a esquina, três zumbis começaram a perseguí-los. Enquanto ele corria de costas elas não paravam. Ele mesmo constatou que era só quando olhava nos olhos dos monstros que eles paravam. Ele não podia parar, porque eram muitos, e o matariam. Correram e viraram mais uma esquina. Estavam na rua do porto. Quando Fernanda perdeu a força nas pernas. Sem nenhuma explicação objetiva, ela perdeu o equilíbrio e caiu. Os monstros a alcançaram.

-    Felipe! – Ela gritou em pânico.

Felipe, naquele momento, se tornou outra pessoa. Ele se tornou poderoso. Correu diretamente para perto dela e matou os três monstros com facão. Dois tentaram atacá-lo, mas um já estava confuso com o olhar dele antes de morrer. Fernanda começou a chorar. Percebeu que havia sido mordida e sabia que estava infectada. Não tinha mais escolha. Pegou a arma que Felipe deu para ela e atirou rápido na cabeça. Ela não queria ouvir ele pedir o contrário.
Caiu deitada de lado no chão e Felipe ficou olhando para aquilo. Maldito seja Deus! Ele só pensava isso. Sempre leva de mim tudo o que eu amo! Maldito! Eu te odeio e odeio toda a sua criação!
Ele nem percebeu que havia confessado amor por ela. Quando entrou no barco, só o ressentimento e o ódio reinavam nele. Voltou ao normal, ao mundo real. Um mundo no qual o sangue dela escorre. Miserável.

2 comentários:

Duan Conrado Castro disse...

Hahahaha...Só faltou chamar esse Felipe de Conrado...O livro parece bom, mas eu já devo ter lha falado que não gosto muito de ler histórias (prefiro algo que vá direto ao ponto: filosofia, sociologia, economia, etc).

"Já vivi o bastante na beira do abismo para saber lidar com a dor de existir."
"Na verdade era tristeza disfarçada de ódio."
"Um dia eu acordei morto."
"Vê se me deixa em paz! Eu não quero ser ajudado, não quero ser salvo! Não vou aceitar a ilusão cor de rosa de que o mundo está bem."
"Eu não tenho a muito tempo alguma motivação para existir."
"Felipe colocou em prática seu discurso de que ele não era companhia para ninguém. Ele praticamente não existia."
"Mesmo para pessoas vivas eu não sou bom amigo. Porque eu despertei para o vazio. Um vazio que as pessoas não suportam. Porque eu sei verdades que as pessoas sentem, mas não admitem."
"É de um lado a expressão da miséria real, e de outro o protesto contra ela, e a religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espírito. É o ópio do povo." [KKKKK XD]
"Certo, mas até lá, me poupe de suas tentativas de me salvar de mim mesmo, me transformando numa cópia exata do que você é. Você não entende a profundidade do meu problema. Parece que está condenada e nunca me entender." [É isso mesmo...]
"Colocando palavras na minha boca e intenções no meu coração, é?"
"Estou de saco cheio de você tentando me convencer de que eu sou você. Vai tomar no cu!"
"Felipe imaginava que ele poderia ser uma das personalidades de um louco internado num hospício."
"e por mais que Felipe às vezes fosse desagradável, ela sabia que ele tinha um bom coração. Ele só precisava perceber isso."
"Ele não se reconhecia mais. Não imaginava como podia se preocupar tanto com uma pessoa se nem pelos parentes ele tinha tamanha consideração."
"Ele não conseguiu falar. Ela o chamou de querido e ele enrubesceu instantaneamente. Caiu sentado um pouco atônito, mas logo se recuperou e explicou sua intuição."
"Na verdade, na essência, ambos eram vazios. Ela que não sabia disso ainda."

Silas disse...

=)

Como você viu, suas ações alteram o personagem. Continuarão a determinar o destino dele. Você vai ver no próximo capítulo(o 19) como isso é verdade. Isso se você chegar a ler, né...