quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Capítulo 19



A casa está vazia. Os meus chamados não recebem resposta. O quintal está vazio. Tudo está vazio. Eu descobri minha resposta e percebi que ela revela algo que não é assim tão bom. Tudo é vazio. Eu descobri um ser humano agachado, encolhido, ressentido. Descobri a mim mesmo. E a casa está vazia. Ninguém saberá disso. Ninguém saberá que eu passei a minha vida me escondendo de mim mesmo com medo do tormento que seria me encontrar.
Eu descobri que sou orgânico, e não uma força do universo. Como toda estrutura orgânica, eu posso apodrecer. E, abandonado nas cadeias do submundo, eu apodreci. Agora tento juntar as partes e formar um ser. Tentar entender. Mas meu cheiro de podre é insuportável.

Eu descobri a resposta para a pergunta. Eu descobri o motivo de o homem ter se matado. Eu sou ele, e ele sou eu. Ele estava nessa casa vazia. Ninguém poderia ouvi-lo. Ninguém poderia fazer companhia real, humana. Ninguém apodrecia, ninguém sofria, chorava, sorria. Ele vivia num mundo onde nunca era confrontado, nunca poderia ter um amigo. Quem não se mataria? Como minha vida é diferente?
Eu ando junto com pessoas, mas sou alheio a elas. Eu me importo com o bem estar delas, mas de alguma maneira sempre me vi como algo diferente. Longe de ser humano.
Quer dizer, eu andava, porque agora e estou sozinho nessa casa. Eu precisei perder tudo aquilo que eu tinha e não sabia para perceber que estava diante de mim a oportunidade de me tornar humano.
Eu saí do inferno e pensei que estava pronto para enfrentar esse mundo real. Afinal, em comparação àquele lugar, isso deveria ser brincadeira de criança. Mas eu tomei um tapa na cara. O mundo real se mostrou mais difícil de compreender do que o inferno. Porque o inferno existe dentro de mim, e isso eu entendo bem. Mas o mundo real existe fora, e o que está fora sempre é um mistério. É autônomo. Eu precisaria ser humano para entender o mundo externo e entender o mundo externo pra ser humano. Um ciclo fechado, para dentro do qual eu só poderia entrar depois disso. De ficar preso nessa casa infernal e descobrir as verdades que a Deusa queria me passar. Aqui eu tenho liberdade pra pensar qualquer merda sem que alguém venha rir e zombar de mim por que acreditar em absurdos. Mas aqui eu jamais poderei aprender qualquer coisa, porque não há ninguém. A casa está vazia.
Eu nem levantei da cama de manhã. O despertador tocou às sete, mas eu voltei a dormir e fui até uma da tarde.
Levantei meio morto, meio abatido. A comida estava fresca na geladeira. Muita cerveja. Detesto isso.
Peguei um biscoito de chocolate. Nem gosto disso, mas foi a primeira coisa que encontrei. Saí da casa e fui para o celeiro. Os donos da fazenda estavam duros feito pedra. Rigor mortis.
Tentei cavar um túmulo ali com uma pá, mas a terra era batida. Cavei do lado de fora do celeiro. Só fiz isso porque eu queria fazer alguma coisa.
Foi muito mais difícil do que eu imaginei. Vai ficando pesado com o tempo. O braço começa a doer. Nem consegui abrir dois túmulos: arrastei os dois para o túmulo. A senhora estava totalmente dilacerada. Quando puxei os braços, a coluna se desprendeu das pernas. Tive que fazer duas viagens. O homem estava esfolado, mas chegou inteiro no túmulo.
Ela caiu de barriga pra cima, embora as pernas tenham fica meio tortas em relação ao corpo.
Ele caiu de barriga pra baixo bem em cima dela. Ironicamente, se não fosse peço braço dele na frente ele estariam com os lábios se tocando.
Eu estava cansado demais pra tapar a cova, então entrei na casa. De novo. Bebi água e liguei a TV. Pareceu bizarro que ainda tivessem luz elétrica. Verifiquei mais tarde que eles possuíam painéis de energia solar em casa.
Naturalmente nenhum canal exibia programação. Eu achei algumas fitas cassete na estante. Coloquei a primeira e vi um vídeo de cobertura de uma formatura. Todos rindo. Uma menina estava se formando no segundo grau. Provavelmente filha deles. Ela tinha algo lindo no olhar.Lembrava até a deusa dos meus sonhos.
Peguei mais água e continuei assistindo àquele vídeo. Ela tinha o cabelos castanho, pelo que vi nas fotos, mas tinha feito luzes na data daquele vídeo. Ela estava radiante. Alegava ter conseguido ma vaga na universidade com bolsa. Os pais estavam orgulhosos. Apesar de todo esse brilho, não vi os outros formandos dando atenção a ela. Eles como que fingiam que ela nem existia. Como podiam excluir uma pessoa com tal expressão?
Continuei a ver o filme, mas lá pro meio eu comecei a devanear. Deram um carro pra ela de presente e ela disse que o usaria na universidade. Isso queria dizer que ela não morava mais ali. Imaginei que ela poderia ter sobrevivido. Quis encontrá-la.
Passou um carro na estrada. Uma minivan em alta velocidade. Nenhum infectado a perseguia. Corri o mais rápido que pude, mas não cheguei a tempo. Ela já estava longe demais quando comecei a acenar.
Lá dentro eu me entreguei aos devaneios novamente. E se ela viesse para a casa dos pais?
Talvez esperando ali eu pudesse encontrá-la. Eu tinha que encontrá-la de qualquer maneira. Eu sentia isso. Mas algo dentro de mim me lembrava que isso estava muito longe das minhas possibilidades: que eu não encontraria ninguém.
Saí da casa com um casaco do velho. O lugar era bem frio, por mais que estivesse fazendo sol. Os corpos estavam repletos de vermes e moscas. Alguns deles estavam mortos.
Joguei terra e me assustei com o movimento que o velho fez. Foi ao um espasmo, mas num mundo povoado por gente morta e assassina você acaba ficando meio paranóico. Consegui encher a cova de terra. Só espero que a infecção não seja transmitida aos outros seres vivos da cadeia alimentar. Senão toda a vida na terra será destruída.
Lembrei do hábito do sargento e fiz uma lista mostrando o estoque da casa. Excepcionalmente bem abastecida com água e comida.
O computador estava funcionando. Rodava em Windows 2000. Fiz uma planilha no Excel, mas depois percebi que aquilo era uma idéia muito idiota. Nem tinha folha pra imprimir. Todas foram usadas pra imprimir aquela pilha de papel. “the fear of freedom” por Erich Fromm. Eu não lia muito bem em inglês, mas alguém me recomendou esse autor a algum tempo. Decidi pegar o livro para ler. Talvez ele tivesse alguma relação com o bilhete. Talvez minha resposta fosse ser ampliada ou mesmo modificada por ele.
Depois de ler o início, lá pra trinta páginas, eu cansei. Aparecia profundamente interessante, mas eu estava me sentindo muito sujo. Cheio de areia no corpo. Achei as roupas do velho e fui pro banheiro. Quando tirei a calça, percebi que tinha algo no bolso. Um papel de ofício amassado. Reconheci a letra de Isabela.

“Eu fiquei tão assustada quando você estava estranho. Sabe, eu tinha medo de você não gostar mais de mim. Mas eu senti algo diferente. Estou escrevendo no avião. Você dormiu, mas eu fiquei acordada. Achei isso no banco. Eu nem ia escrever nada, mas você falou o meu nome enquanto dormia. O meu nome...
E você sorriu feio um idiota. Nunca imaginei aquela cara em você. Pensei em como sempre é agradável estar contigo. Eu adoro quando você tem essas crises românticas e fica todo sensível. Daí você se dá conta disso e começa a se gabar. É um palhaço. Mas eu gosto.
Eu gosto de como você chuta a perna quando anda distraído. De como coça a cabeça quando não está entendendo. Eu te amo. Mas não digo isso sempre. Pra mim as vezes é difícil falar. Eu nem sei porque. Mas isso vai ficar no seu bolso. Em breve você vai ler. E eu quero ver a sua cara. Eu descobri as poesias que você fazia pra mim no mercado. Sempre que você pegava aquele notebook você escrevia uma. Porque nunca me mostrou?
Uma delas tinha até o meu nome...
Eu gravei num pen drive. Daí elas não se perderam na estrada. Eu reli no iate. Senti mais segurança.
Quando eu comecei a escrever eu não sabia o motivo, mas agora sei. É que eu quero que você saiba. Sei que você já vê nos meus olhos, mas eu queria ter certeza. Queria que você fizesse como eu. Que lesse o que eu escrevi escondido e sorrisse, chorasse. Queria que enquanto eu estivesse dormindo ou, por qualquer motivo, não estivesse contigo, você olhasse esse pedaço de papel. Nossa, essa frase ficou doida. Espero que consiga entender. Sem rasuras nesse bilhete.
Da sua Isabela.
Obs: você vai tirar essa barba! Isso é um decreto!”

Eu dei uma gargalhada no final, mas estava chorando ao mesmo tempo. Eu estava soluçando. Sentei no canto do banheiro, bem do lado do vaso sanitário, e comecei a chorar. Beijei o bilhete algumas vezes, mas percebi que o estava babando, então parei. Eu reli a mensagem, e cada letra parecia trazer ela pra perto. Como se, através daquele bilhete, ela estivesse tendo contato comigo.
Não havia esperanças, mas ainda assim o sentimento queimava no peito. Essas coisas a gente não controla e nem decide. Só sente e pronto. E eu aproveitei o sentimento. Li e reli até que fui lentamente acordando pra realidade. O avião a levou embora. Eu nem imaginava onde ela estava. Apesar da distância, eu não sentia que o laço estava quebrado. Apesar de que, com o avião, eles poderiam estar em qualquer lugar, eu não perdi a esperança.
Tinha uma banheira ali. Eu nunca tinha usado uma na vida. Pareceu estranho. Afinal, como eu faria pra me esfregar debaixo da água?
Havia sabonetes líquidos e outras coisas que eu não entendi bem. Coloquei sabão demais e a espuma quase ultrapassou minha cabeça.
Eu ri por um instante, mas depois fui tomado por uma profunda melancolia. Só naquele momento que eu senti a dor que estava dentro de mim por causa de toda a tragédia. Antes eu estava com ela. O mundo estava caindo, mas eu estava com ela. Estava tudo bem. Eu tinha sido humano aquele tempo tudo. Só não sabia disso. Olhei pro bilhete dobrado em cima do vaso. Não tinha nenhum cheiro, mas eu gostei de ficar imaginando que a essência dela ainda estava no pedaço de papel.
Esvaziei a banheira e deixei o ralo aberto. Tinha uma ducha, então assim eu consegui tomar um banho mais ou menos da maneira que eu estava acostumado.
Depois de vestir a roupa do dono da casa, peguei o papel e coloquei no bolso da jaqueta. A TV ainda estava ligada, mas a fita estava acabada. Estava retrocedendo automaticamente. Quando terminou, a fita saiu e eu guardei. Saí da casa. Estava tudo deserto. Andei sem rumo. Não mudei de direção pra não me perder. Depois de alguns minutos eu vi uma cerca. Tinha uma vaca presa. Estava sozinha. Na verdade nem estava presa. Um portão ali perto estava aberto. Quando cheguei perto, ela se levantou. Mas estava muito fraca. Fiz carinho na cabeça dela e ela cheirou minha mão. Imaginei que estava com fome e voltei no celeiro.
Ainda estava fedendo. Tinha sangue no chão.
Eu não sabia qual era a ração dela. Tinha de dois tipos. Levei os dois até lá. Estava pesado, mas eu me sentia leve.
Coloquei as duas diante dela e ela comeu ambas. Pensei que ela poderia estar com sede, então dei água a ela também. Trouxe uma espécie de pote de madeira. Não sei qual é o nome, mas é normal o gado beber água naquilo. Era bem pequeno, provavelmente só duas vacas conseguiriam beber ali.
Enchi de água e ela bebeu tudo. Deitou de novo e dormiu. Talvez estivesse doente ou velha. Talvez os dois.
Era uma vaca, mas eu não tinha mais companhia. Deitei no gramado e peguei o bilhete. Comecei a ler e o vento o arrancou da minha mão. Levantei e corri. Não parei até conseguir pegá-lo. Fui parar dentro de uma pequena floresta. Ficou preso numa árvore, e eu tive que subir pra pegar.
Lá de cima eu vi um telhado. Subi mais um pouco e vi uma cabana. O galho em que eu subi pra ver era frágil e quebrou. Caí com as costas na raiz da arvore e apaguei.

Apareci num jardim. Era o jardim da Deusa. Comecei a chorar.

-    Eu morri? – perguntei
-    Isso é motivo para chorar? Quantas vezes você já não quis acabar com sua vida?
-    É que eu achei um bilhete. E eu li uma charada. Eu queria viver. Irônico eu morrer logo agora.
-    Não morreu não.

Vi meu corpo estirado na raiz da árvore.

-    Você ficaria paralítico com isso, mas não ficará.
-    Por quê?
-    É que você não sabe como seu espírito controla seu corpo. Ainda não despertou.
-    Porque eu sou ignorante eu vou ser curado.
-    Não. Você será curado porque conseguiu.
-    Consegui o quê?

Ela me abraçou. O ar saiu pelo nariz dela e me deu um calafrio na espinha. Eu sorri. Senti-me feliz. Em paz.
Vi raízes levantando o meu corpo. Fiquei curioso.

-    Não olhe. – disse ela. – feche os olhos.
-    Mas estou curioso.
-    Não é a hora de você entender isso. Tem que deixar o universo te guiar no caminho e não querer controlar tudo.
-    Tudo bem. Desculpe.

Eu fechei os olhos e de repente comecei a voar. Isabela estava voando comigo. Ela não me viu.

-    Está vendo ela? Vocês estão voando juntos agora. – disse a deusa.
-    Onde você está? – perguntei.
-    Estou em você.

Isabel desceu. Fui junto com ela. A abracei lá em baixo e subimos. Entendi que estávamos agora construindo nossa história juntos. Que eu não poderia mais simplesmente voar para qualquer lugar. Agora estávamos construindo o nosso destino juntos. Ela estava de olhos fechados. Nem me olhou. Mas voou comigo. Demos voltas no céu. As vezes eu a seguia e outras ela me seguia. Tínhamos um destino, mas nos desviávamos dele constantemente. Um ajudava o outro a continuar. Não consegui ver o meu destino.

Acordei na raiz da arvore. Eu estava me sentindo bem. Passei as mãos nas costas e senti uma cicatriz. Parecia cirúrgica.
Segui na direção da cabana. Tinha um velho com uma espingarda sentado numa cadeira de balanço. Chamei, fiz barulhos, joguei uma pedra na varanda. Ele não despertou. Cheguei perto e toquei nele. Estava frio. Morto. Pelo menos não tinha nenhuma ferida, então provavelmente morreu naturalmente. Ele tinha um pote nas mãos. Tinha uma mensagem escrita.

“The medicine for the cow. This is urgent.”

Notei que o bilhete estava na minha mão. Estava tão acostumado que andei alguns metros sem perceber. Guardei no bolso da calça e peguei o pote. Pensei em pegar a arma, mas mudei de idéia e deixei lá.
Andei de volta para onde a vaca estava. Demorei um pouco pra chegar lá. Não tinha percebido a distância que corri atrás do papel. Ela ainda estava deitada, mas quando cheguei ela levantou. Parecia um pouco melhor.
Segurei a coleira dela e a levei pra casa. Usei uma corda pra amarrá-la. Nos fundos e fui até o celeiro com desinfetante e uma vassoura.
Varri os pedaços pequenos que ficaram ali e joguei desinfetante no sangue. O cheiro de podre ficou melhor, então eu trouxe a vaca até ali. Fechei as entradas, só deixando aberta a parte do teto. Eu nem sabia fechar.
Dei a ela um pouco mais de ração misturada com o remédio e fui pra casa. Ela comeu e se deitou num canto cheio de feno. Saí e deixei-a lá.
Dentro da casa, peguei a primeira página do livro e comecei a escrever no verso. Só tinha o título nela.

“São tantas as coisas que eu queria te contar. Só tenho medo de você pensar que sou louco. Porque eu estou isolado e provavelmente nunca mais nos veremos, acho que não tem problema. Vou sonhar que você está lendo. Vou fazer isso até a solidão desse lugar me enlouquecer e as minhas ilusões deixarem de me proteger. Eu falei com a Deusa.
Eu estava pensando aqui que queria brigar contigo. Eu nem sei o motivo. É que eu queria fazer qualquer coisa contigo. Até isso me faria bem.
Eu sonhei que estávamos voando. Tão lindo. Você estava de olhos fechados sorrindo. Claro que tinha que estar. Você não sabe que estou aqui vivo pensando em você e te escrevendo. Também não sei como você está.
Cadê você?”

Deitei na cama e descansei. Não dormi: só fiquei olhando pro teto.
Fiquei de cabeça pra baixo na cama e deu pra ver o céu. Noite bonita. Desliguei a eletricidade, porque estava gastando as baterias.
Quando abri as cortinas, vi a lua. Queria que Isabela pudesse ver aquilo. Lindo.
Peguei o papel de novo para escrever, mas nada me veio em mente. Juntei com o bilhete dela e coloquei no bolso. Continuei com as roupas de frio.
Depois de muito tempo imaginando coisas eu acabei me aborrecendo. Muitas fantasias, nada real. Peguei no sono.

Tive um sonho relaxante e sombrio ao mesmo tempo. Belo e terrível. Só sei disso pela sensação que eu tive ao acordar no dia seguinte. Não lembro do conteúdo. Só de andar por uma rua. Coisa vaga.
Eram sete da manhã. Nem acreditei que eu estava tão disposto numa hora daquela sozinho. Foi no celeiro e descobri a porta aberta. A vaca não estava ali, mas a coleira dela sim. Tinha um sino na coleira. Peguei do chão e toquei, ao que um infectado surgiu do nada. Não sei se ele dormiu no celeiro ou o que. Mas ele estava lá. Pulou em cima de mim, mas consegui me soltar e dar um chute no peito dele. Era de baixa estatura.
Olhei nos olhos dele, ao que ele parou. Parecia um pouco confuso. Talvez até assustado. Senti algo como ar saindo da minha boca. Mas me dava um calafrio agradável e ao mesmo tempo reprovável. Era como uma espécie de prazer demoníaco. Coisa louca.
Abri um pouco mais a boca e percebi que saia mais. Com as mãos eu controlava o fluido. Lancei-o contra o infectado, e com isso consegui controlar as ações dele. Uma coisa bem estranha, mas curiosa e até mesmo divertida. Ordenei que ele espalhasse feno pelo celeiro e ele fez isso.
Algo estranho aconteceu quando ele terminou. Ele colocou as mãos sobre a cabeça e começou a berrar. Parecia estar sofrendo. Eu pude ver a esfera na cabeça dele. dentro dela eu vi um velho barbado apoiado num cajado. Ele disputava comigo pelo controle do infectado. Eu consegui superá-lo facilmente, e ele olhou pra mim. Começou a rir e chamou um amigo.

-    Olha aí quem tá me enfrentando? – disse ele.
-    O renegado! Hahaha! Ta querendo voltar, é? – disse o outro.

Fechei as mãos e a esfera se desfez na cabeça do infectado. Ele caiu morto. Se é que estava vivo antes.

O som do avião me despertou. Perdi um pouco a noção da realidade. O sonho pareceu tão real. E se eu estivesse sonhando naquele momento também. Ocorreu-me, de repente, que toda a existência é um sono. Que quando nascemos nos estamos na verdade indo dormir, para despertarmos apenas se formos capazes. Não tive muito tempo para refletir sobre aquilo. Peguei o papel com a charada e saí correndo para fora. Vi o avião. O mesmo avião que me trouxe aqui estava de volta.
Por mais que eu estivesse eufórico, entrei no estaleiro e descobri que a vaca realmente não estava mais lá e que tinha o sino com a coleira no lugar onde ela deitou pra dormir. Sacudi o sino e nenhum infectado apareceu.
Saí para estrada e acenei para o avião. Não seria o bastante, então levei feno pra lá e acendi com um isqueiro que estava no bolso da jaqueta. Peguei a espingarda do velho, mas percebi que estava descarregada.
O fogo atraiu o avião, que começou a descer. Vi no horizonte os infectados chegando. Tentei imaginar em que ponto da estrada o avião iria parar, mas não consegui. Correr para qualquer lado poderia ser um erro fatal. Só fiquei pulando e acenando. Eu parecia um idiota com meu sorriso. Do ponto de vista geral, não muita coisa mudara. O mundo foi destruído e o avião provavelmente não teria lugar algum para ir. Mas eu li um bilhete, tive um sonho, respondi a uma charada e minha vida tinha mudado. Mesmo no meio de toda essa tragédia, algo na minha vida aconteceu que parecia bom. Bom demais, talvez.
O avião soltou um pára-quedas quando pousou. Freou rápido e parou bem perto do celeiro.
Todos desceram do avião e atiraram nos infectados que corriam a alguns quilômetros como uma massa negra no horizonte. Corri até eles curioso. Felipe foi o primeiro a descer e corre na minha direção.

-    Vou te contar, maluco, tu deve ser bom de cama mesmo. – disse ele
-    Quê?
-    Tua mulher fez um escândalo no avião e fez a gente voltar aqui atrás de você.
-    Ela fez isso?
-    Bonitinho, né? Só que temos um pequeno problema. O motor do avião acabou de estragar. Vamos todos morrer. Não é romântico.
-    Tem um trailer nos fundos da casa. Talvez possamos usar ele.

Isabela chegou correndo e pulou em cima de mim. Quase caí, mas consegui ficar de pé. Ela é bem leve. Eu nunca tinha sentido o gosto de um beijo de reencontro. Fiquei até um pouco anestesiado.

-    Eu achei seu bilhete. – disse eu
-    Gostou, né?
-    Hahahaha! Convencida!
-    Roberto, onde está o trailer? – perguntou Jack
-    Lá. Nos fundos da casa. – disse eu apontando a direção.
-    Borá rápido. Os jumpers vão chegar aqui rápido.

Corremos para o trailer e percebemos que não havia chave lá dentro. Por mais absurdo que isso possa parecer, Kimberly achou a chave dentro do sino da vaca. E olha que eu estava reclamando que ela não estava ajudando.
Jack iniciou o trailer. Estava com o tanque cheio. Saímos pela estrada torcendo para que os infectados não estivessem naquela direção também. Sabíamos, no entanto, que eles estavam e todos os lugares. Nós provavelmente morreríamos como Felipe falou. Era mesmo o mais lógico a se supor.
Eu quis aproveitar meus últimos momentos para contar minhas experiências, mas depois de parar de me beijar ela começou a falar sem parar.
Ouvi o que ela dizia e até fiz alguns comentários, mas não tive nenhuma oportunidade para contar minhas aventuras. Depois de um tempo ouvindo o que ela dizia, percebi que tudo era concreto. Fiquei com vergonha de contar meus devaneios para ela, então deixei pra lá.
Foram muitas as coisas que ela me disse, e ela disse tão rápido que eu não lembro bem do que se tratavam. Ela só me contou as aventuras que teve enquanto estávamos distantes. Pra onde o avião foi, como ela sentiu minha falta e lutou para voltarmos. Augusto não falava uma palavra, mas estava sempre nos olhando.
Com o tempo, tudo se acalmou e ela parou de falar. Apesar de gostar de ouvi-la, fiquei frustrado por não poder falar. Quando fui pegar meu bilhete, que nem sabia se entregaria, derrubei o enigma e Felipe pegou. Leu e ficou parado pensando. Releu. Parecia perplexo.
Em alguns instantes ele fez uma expressão com o rosto de quem chega a uma conclusão, e veio me devolver o papel.

-    O que achou? – perguntei
-    Não é obvio? – respondeu
-    Pra mim não pareceu.
-    Ele se matou porque precisava de sofrimento. O ser humano precisa da Pulsão de morte.
-    Claro que não. Ele se matou porque se sentia sozinho.
-    Não. Ele ficou saturado com toda a companhia e não conseguiu mais desejar. Na verdade solidão e tédio são a mesma coisa.
-    Eu não disse isso. Falei só que ele precisava de contato com um ser humano. Precisava de uma conexão de verdade. De algo mais.
-    Então você acha que o ser humano tem algo a mais? Que não somos animais?
-    Claro que somos animais. Mas nós temos empatia. Nos conectamos. Não é por conveniência.
-    Então isso é um desejo. De uma forma ou de outra você pode se saturar e ficar entediado.
-    Não. Conexão é algo que basta. Você se conecta e pronto.
-    Hehehe. Sei. Como você e sua namoradinha?
-    Por que tem que falar no diminutivo?
-    Por mais que eu adore trazer a má notícia, combinamos que eu não faria isso.

Isabela levantou num susto. Bateu com a cabeça na janela e deitou no meu colo.

-    Pesadelo? – perguntei
-    Horrível. – ela respondeu.
-    Do que você estava falando, Felipe?
-    Que a minha resposta é superior à sua.
-    Ah. Acho que isso seria mesmo uma má notícia. Enfim, acho que nós só somos diferentes e por isso chegamos a conclusões diferentes.
-    Deve ser.

Todos estavam num silêncio meio constrangedor. Se entreolhavam, me olhavam. Depois do que Felipe falou eu me senti desconfiado, mas não sabia do que desconfiar.

-    I think we should tell him. – disse Kimberly. – it’s not fair…
-    Tão falando de que aí? – perguntei.

Ninguém falou nada e o trailer parou bruscamente. Fomos todos para a parte da frente do trailer e vimos uma multidão parada no meio da estrada. Estávamos no campo de visão deles, mas não reagiram à nossa presença. Jack se aproximou com o trailer e vimos uma mulher parada diante dos infectados. Estava com as duas mãos estendidas. Eram milhares de infectados. Felipe desceu do trailer. Chegou perto dela e caiu de joelhos. Rapidamente se levantou e voltou para o trailer. Parecia apavorado e ao mesmo tempo eufórico. Os infectados saíram da estrada. Como que abriram caminho. Um deles ficou, e ela fechou a mão direita, o que aparentemente o matou. Arrastou o corpo para fora da estrada e andou de costas na nossa direção, se afastando dos infectados. Chegou na porta e deu um grito. Todos caíram, e ela desmaiou. Fui o primeiro a chegar nela e me assustei. Era a mesma garota da formatura. Devia já ter uns trinta e poucos anos, mas era ela. Eu tinha certeza. Ainda linda. Felipe também reagiu assim à imagem dela, mas ele parecia mais apavorado do que perplexo. Ela despertou e falou com a voz debilitada.

-    Passa. Não vou segurar por muito tempo. – ela falou em português.
-    Qual é o seu nome? – perguntei.

Ela desmaiou e não me respondeu. Consegui levantar ela no colo e colocá-la no lugar onde eu estava sentado. Jack acelerou e ficamos olhando pra ela por uns instantes. Vi que os infectados ainda estavam vivos na beira da estrada. Alguns com dificuldade conseguiam se arrastar. Era como se estivesse, por alguma razão, imobilizados. Os olhos dela estavam virando e eu fiz carinho no cabelo dela. Era aquele mesmo rosto. Tão lindo...

-    Você conhece ela, Roberto? – perguntou Isabela
-    Conheço não. Porquê?
-    Você parece reconhecer ela. Como se já a tivesse visto em algum lugar.
-    Ah. Eu vi sim.
-    Mas você disse que não conhece. Tá mentindo pra mim?
-    Não se precipita. Ela morava naquela casa onde me escondi. Tinha uma fita com a formatura dela que eu assisti. Acho que é ela mesmo.
-    Ah ta. Mas você ta fazendo carinho nela. Como se tivesse com saudade. Porquê?
-    Eu não sei.
-    Quando você ta me escondendo as coisas você fica dizendo que não sabe. Sempre faz isso.
-    Ta brava porquê?
-    Eu não to brava!
-    Deve ser a TPM. – disse Felipe.

Depois disso ficamos em silêncio. Sentei no chão e vi Felipe bebendo. Achou vodka no frigobar. Na verdade só tinha vodka.
Eu senti que algo estava errado, mas não percebi naquele momento o que era. Quando dizem que o que os olhos não vêem o coração não sente estão errados. Eu estava sentindo algo, e meus olhos só não diziam o que era.
Atravessamos a multidão e os outros infectados chegaram até ela. A mulher acordou e os outros levantaram.
Pensei que as multidões se uniriam, mas começaram a atacar-se. Jack olhou pra trás e bateu o trailer numa pedra enorme.

-    Fiquem de olho aí! – disse ele

Ele e Augusto foram consertar o problema, segundo eles não muito grave, que foi causado pela batida. A mulher veio para o meu lado. Uma figura magnífica. Profundamente fascinante. Olhou para os infectados se matando. O sol se refletia nos olhos dela. Cor de mel, como na fita. Não mudaram.
Olhei para aquilo e fiquei abismado. Dois jumpers pularam e se encontraram no ar. Estavam cheio de ódio. Nenhum infectado parecia se importar. Eu vi uns cinquenta correndo de forma absurdamente rápida. Chegaram pelo lado direito daquela massiva guerra. Eles corriam tão rápido que o corpo tinha que ficar curvado pra frente. Eram jumpers.

-    Estamos com problemas. Consertem isso mais rápido! – disse a mulher
-    Qual é o seu nome? – perguntei
-    É Silvia. E o seu?
-    Roberto.
-    Muito prazer, Roberto.

Fiquei meio confuso com a forma como ela me tratou. Naquela confusão toda e ela dando atenção à formalidades?
Os jumpers recém chegados começaram a matar os outros infectados muito rápido. Vi corpos voando, lançados por eles. Uma coisa inacreditável diante dos meus olhos.
Felipe correu em direção à batalha e eu quis ir atrás, mas Silvia me segurou.

-    Ele tem que ir. – disse ela
-    O quê? Do que você ta falando? Ele vai morrer!
-    O destino é dele. Não tente mudar.
-    Destino não existe!

Ela não me deixou ir. Nem era forte, mas a palavra dela teve poder sobre mim. Um poder incrível. Eu fiquei como que hipnotizado. Parado diante dela. Senti-me bem. Em paz. Incrível como uma mulher pode manipular um homem.
Eu vi Felipe chegando à multidão. Eu estava sorrindo. Parecia que eu tava meio drogado.
Ele parou diante dos infectados e estendeu as mãos. Os jumpers que vieram juntos foram na direção dele, matando todos os infectados no caminho.
Não tinha como aquilo ser real. Parei de rir quando os jumpers pararam diante dele e deram meia volta. Os infectados vieram e os jumpers os destruíram lentamente todos os infectados.
A estrada ficou cheia de cadáveres e os jumpers foram embora. Felipe voltou andando pela estrada. Seu olhar parecia profundo. Nem olhava para as coisas. Tropeçou e quase caiu no meio do caminho.
Todos ficamos espantados, mas ninguém teve coragem de perguntar que merda foi aquela que ele fez.

-    Pronto. Caralho, o que aconteceu!? Morreram todos? – perguntou Augusto

Ninguém falou nada. Era a primeira vez que eu ouvi a voz dele naquele dia. Estava muito quieto, e isso nem era comum.
Subimos na van. Silvia olhava para Felipe com um olhar de quem está perplexa, mas não assustada. É como se ela realmente soubesse. Totalmente louca, minhas percepção, mas foi o que pareceu. Felipe parecia cansado e mergulhado em si mesmo. Deitou nos fundos onde ficava a roupa suja e apagou.
Seguimos pela estrada: peguei a garrafa de vodka e dei uma golada. Que dia...

2 comentários:

Duan Conrado Castro disse...

revisão ortográfica

um ser humana
Agora tento juntas as partes
Como minha vice é diferente?
fresca n geladeira
Denovo.
Joguei terra e ma assustei
Nossa essa, frase ficou doida
a ler e o vendo o arrancou da minha mão.
que[ê]?
Um ajudava o outro a continua[r]
Era mesmo o mai lógico a se supor.
- Porque tem que falar no diminutivo?[Por que]
Porque[ê]?
ta[á]
Porque[ê]?
porque[ê]?
augusto
Vi corpo[s] voando, lançados por eles
O que[ê]?

P.S.: Só falta agora rolar um romance entre o Felipe e a Sílvia...isso seria um chavão...além de ser heterossexual.

Silas disse...

Erros revistos.

Não to em casa e não sei se vai ter como ver tudo. Valeu por se dar ao trabalho.

Sobre Felipe e Sílvia: Tem que ver a coisa mais profundamente. Eles já tinham uma relação profunda antes de se conhecerem. Depois você vai entender...