quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Capítulo 20


Dia após dia, era após era, o ser humano sempre está lutando pela liberdade. É comum acreditar-se que é um direito inalienável de todas as pessoas.
Mas mesmo que todas as grades e que todos os ditadores não mais existissem, ainda assim o ser humano continuaria ansiando por liberdade. Porque há uma prisão pior do que a bola de aço e uma escravidão pior do que o trabalho forçado: é a prisão invisível que a própria pessoal cria. Sem que ela o veja, essa prisão a orienta. Sem que ela sinta, ela a impede de caminhar. O homem vai para onde quer dentro de um cubículo. Mas nunca para fora dele...

Eu e um velho amigo estávamos numa fila. Eu não sabia pra onde a fila nos levaria. Havia uma menina linda na minha frente. Eu não ousava falar com ela.
Um grupo de garotos, que parecia um tanto idiota, roubou algo de mim. Eles disseram que só iriam me devolver se eu falasse com a menina. Eu hesitei, porque falar com ela me assustava, mas acabei tomando coragem.
Falei com ela, e como esperava, ela me deu um fora. Nem falou nada. Depois eu voltei ao grupo e eles me devolveram um telefone publico. Era como os orelhões, mas só com o aparelho. Eu tinha que ligar o telefone num muro ali perto para fazer uma ligação, mas a garota veio e tirou minha concentração. Ela exercia algo como um magnetismo sobre mim.

-    Eu te conheço, sabia?
-    Aé? De onde?
-    Eu falo contigo no MSN. Mas você não sabe que sou eu.

Quando olhei pra ela, percebi que ela nunca tinha saído da fila. Ela olhou pra mim e depois virou a cara. Liguei o telefone e fui transportado pra outro lugar. Um acidente, dezenas de mortos. Eu estava sendo carregado num carrinho de mão. Estava morto.
Os infectados atacaram os homens que empurravam o carrinho, e o corpo que estava acima do meu despertou. Quando ele se afastou, meu corpo se reanimou. Talvez eu estivesse fingindo de morto.
Fui me arrastando pela lama. Estava chovendo. Eu me escondi dentro de um carro pequeno e minha cabeça ficou exposta.
Um muro caiu em cima do barro, mas não se desfez. De repente eu não estava mais preso ali, mas era outra pessoa. Eu estava fora e vi a outra pessoa que eu havia me tornado sair de baixo do carro. Havia mais uma pessoa presa debaixo dos escombros, ao indivíduo que havia acabado de sair buscava uma maneira de soltar a pessoa, mas suas idéias eram ineficazes e até mesmo idiotas.
Tirei a pessoa, era um sujeito pelado. Estava se afogando na lama, mas consegui tirá-lo a tempo. Havia fumaça e fogo para onde andávamos, a despeito da chuva. Destruição por todos os lados.
Choramos.
Apareci num prédio com meu velho amigo e o cara que salvei dos escombros. Ele estava agora de cueca. As pessoas olhavam para ele pasmas. Ele era japonês.
Quando saímos do prédio, vimos um microônibus correndo num cruzamento próximo. Infectados o perseguiam.
Corri pra dentro do prédio e avisei para as pessoas fugirem e se esconderem, mas ninguém me ouviu. Ficaram olhando a confusão e eu fugi. Subi pelas escadas e comecei a perder as forças no terceiro andar. Eu pulava de três em três degraus.
Comecei a ir de dois em dois e recuperei minha força. Não sabia se ia pro quinto andar ou para o sexto. Tinha que chegar na casa de uma garota com a qual fiquei há um tempo. Pensei em me esconder ali.
Decidi ir para o sexto andar, mas todas as portas estavam trancadas. Olhei pelo vidro da porta da escada e vi infectados subindo. Eles me viram. Corri pelo corredor e achei outra escadaria.
Eu poderia subir até cansar, mas no fim das contas eles me matariam de qualquer maneira.

Acordei assustado, mas deitei e dormi de novo.

Eu cheguei ao terraço do prédio. A garota com quem eu fiquei estava na piscina lá em cima com o novo namorado. Ficou vermelha quando me viu.

-    Roberto, o que você ta fazendo aqui?
-    Baixa a cabeça. Eles estão vindo.

Chegamos perto da borda da piscina e deixamos a cabeça abaixada. Como a piscina ficava numa área elevada eles não nos viram. Um barulho na escada os atraiu. Eram dois. Um deles era meu velho amigo.

-    Porra, não podemos ficar aqui. Não tem comida nem água.
-    Na verdade aqui tem água. – respondeu a garota
-    Da piscina? Perguntei.
-    Não. Tem uma geladeira ali que tem água de beber.

Acordei definitivamente.
Foi uma noite triste. Como todas as noites em que eu sonho com os infectados. Não fiquei triste porque eles estavam na minha mente até no sono. Poderiam ficar na minha mente o quanto quisessem. O problema é que eu acordei e me dei conta de que não era só sonho. Não estava só na minha cabeça. Era real. Eu estava correndo de um lado para o outro pra sobreviver. Tudo real...
Sobre o meu sonho eu poderia falar, mas ele foi profético. Pra quem estiver lendo isso, que saiba que isso é pessoal demais. Mas essa menina, a do sonho. Ela eu a considerava uma farsa. E, no entanto, era apaixonado por ela. O sonho foi uma mensagem, todo no esquema. Se você realmente quiser entender, vai conseguir. Se pouco se importa, melhor. Eu não quero que saiba.
Kimberly estava dirigindo. Parecia mal. Fui até lá e falei com ela. Meu inglês não é como o de um nativo, mas consegui falar.

-    Tudo bem contigo? – perguntei
-    Você fala inglês? – perguntou ela
-    Eu falo sim. Aprendi por causa dos filmes.
-    Desculpa pelas coisas que eu disse...
-    Não estou entendendo.
-    Eu pedi desculpas... por causa das coisas que eu disse...
-    Entendi o que falou, mas não sei porque você acha que tem que me pedir desculpas.

Ela olhou pra trás e viu que Jack estava dormindo. Sono pesado.

-    Concordamos em não falar, mas eu falei. Você não entendeu?
-    Falar o quê?
-    Olha, essa sua namorada é mentirosa.
-    Quê?
-    Foi só você sair que ela ficou com aquele cara ali. Augustus.
-    Ela ficou com o Augusto?
-    Eu sinto muito.
-    É difícil pra mim imaginar. Mas também parece absurdo que você esteja mentindo.
-    Todos pensamos que você estava morto. Ela ficou sem controle quando você saiu. Vivia abraçada com o joelho. Uma noite ela agarrou o Augustus e não desgrudou mais dele.
-    Também foi assim comigo. Ela nunca me amou mesmo. Acho que ela nem tem muita consciência.
-    Você não está bravo?
-    Estou sim. Mas eu fico tentando me fazer de compreensivo pra mim mesmo. Desprezo esse sentimento que eu tenho. Eu realmente a amo, mas sei que ela não faz idéia de quem eu sou. Ela só estava comigo por conta desse trauma. Achava que sou um anjo, mas não sou. Eu não sou porra nenhuma.
-    Você tem bom coração. – disse ela ao passar a mão no meu rosto
-    Eu agradeço sua tentativa de me consolar. Não vou dizer que você está mentindo, mas é que você não me conhece. Você não sabe como é dentro de mim. É um imenso vazio cheio de fogo.
-    Não estou te entendendo.
-    Eu também não entendo.

Ficamos em silêncio por algum tempo. Olhando para a estrada. Uma placa anunciou que em dez milhas chegaríamos. Olhei pro velocímetro e ele estava marcando mais ou menos quarenta por hora. Deveríamos chegar lá em quinze minutos.

-    Você acha que lá está infestado? – perguntei.
-    Espero que não. Não agüento mais. Eu to com fome. Só tem bebida alcoólica aqui. – respondi.

Olhei pra trás. Todos estavam dormindo. A iluminação deixava tudo mais triste. Voltei pro lugar onde eu tava sentado. Do lado de Sílvia, que dormia tranquilamente. Parecia estar tendo um bom sonho.
Felipe estava falando dormindo.

-    Não deixa ele sair. Não. Ele é novo. Não pode nascer ainda. Prematura. Não me deixa sair ainda. É muito cedo. É cedo...

Felipe levantou e abriu os olhos. Pensei que estava acordado, mas ele se deitou imediatamente e fechou os olhos. Ignorou meu chamado. Talvez tenha ignorado por escolha. Não sei.
Augusto protegeu o rosto com os braços. Parecia lutador. Eu nunca tinha reparado como na hora de dormir as pessoas continuavam fazendo coisas. Voltei La pra frente e Jack acordou.

-    Quer que eu dirija, Kim?
-    Não. Descansa. Você já fez demais.
-    Você ta sem comer.
-    Detesto me sentir inútil. Se soubesse dirigir eu ajudaria. Sério.
-    Eu te ensino. – disse Jack. – vai aprender. É fácil.
-    Se eu aprender, dirijo. – respondi.
-   
Chegamos num posto de gasolina. Tinha uma loja. Sangue no vidro e um freezer na frente da porta. Olhamos pelo vidro. Um homem se matou lá dentro. Seu sangue estava seco e seu corpo cheio e moscas. Não tinha ninguém ali. Empurramos a porta e conseguimos entrar. Mas demorou bastante. Era pesado e ficou agarrado.
O cheiro lá dentro era horrível. Carne podre, comida estragada.
O caixa estava aberto e sem dinheiro. Talvez alguém tenha roubado. Pegamos sucos, água, batatinhas, chocolate. Coisas que não tinha passado da validade. Jogamos quase toda a vodka fora. Deixamos só uma garrafa, porque eu pedi. Eu estava com vontade de me destruir. Aquilo da Isabela estava me corroendo por dentro. E ela dormia tranqüila. Olhos fechados, totalmente alheios àquele caos que eu via. Como no sonho. Voando de olhos fechados.
Eu podia mentir pra mim mesmo com palavras, mas no fundo ela me fazia me sentir especial. Porque eu a ouvia, e me sentia indispensável. Sentia ser importante, se não para mim mesmo, ao menos para alguém.
Mas era tudo uma fraude. Uma mentira que criei para mim mesmo. Eis aí a verdade. Era tudo uma mentira. Não havia nada bem e nem nada ficaria bem. O mundo estava um caos, e minha alma também. E eu sentia que isso era algo perpétuo. Prisão perpétua nesse mundo e em mim mesmo. Tortura dupla. Ser e estar.
Todos acordaram inclusive Isabela, que tentou me beijar. Eu a abracei. Não tive coragem de dizer que sabia, mas abraçá-la já não era a mesma coisa. Não me trazia mais paz. Apenas um desejo misturado com repulsa. Era como querer mergulhar na lama, mas ter vontade de permanecer limpo. Não encontro outra maneira de definir. A gente sente e vive, mas pra explicar nem sempre é possível. Faltam palavras...
Dei a desculpa de que estava me sentindo estranho e não falei com ela. Quando comecei a beber com o Felipe ela percebeu que eu sabia.

-    Me dá um pouco? – disse ela.
-    Você quer beber?
-    Se eu não quisesse eu pediria?

No fundo eu mandei ela tomar no cu com aquela hostilidade, mas não falei nada. Detonamos metade da garrafa.

-    Fala aí, Felipe. Teve pesadelo essa noite?

O sol estava já nascendo, e todos acordaram. Aprendemos a dormir quando fica escuro e a acordar quando o dia começa. Menos eu, mas eu já tava me adaptando.

-    Sei que tive um sonho, mas esqueci,
-    Sei como é.
-    Falai, cara. Como você conseguiu parar os jumpers?
-    Não parei eles. Alguém fez isso. Tinha alguém controlando eles.
-    Quem?
-    Sei lá. Um velho.
-    Não é verdade. – disse Silvia. - Foi você.
-    Porra, eu tava lá. Quer saber mais que eu?
-    Eu sei mais do que você. Você nasceu. Prematuro, mas nasceu. E é promissor.
-    Porra. Mais uma maluca.
-    Você não acha isso de verdade. Você sente o seu destino. Sente que está despertando. Não sente?

Felipe deu uma golada grande. Olhou pra ela. Andou em sua direção e deitou em seu colo. Não entendi nada. Ele ficou apontando pro teto. Dizia que tinha estrelas de plástico coladas lá, mas eu não vi nenhuma. Ele estava muito chapado. Abraçava Silvia e esfregava o rosto no ventre dela. Pensei que ela ficaria chocada, se sentindo estranha, mas ela sorriu e fez carinho na cabeça dele. Foi realmente a primeira vez que eu o vi sorrindo.

-    Viu, Roberto. Ele só é prematuro. Prematuros sofrem mais. Mas ele tem o destino dele e está se saindo bem.
-    Eu não consigo te entender, Silvia. Você parece ter uma sabedoria incrível, mas acho que vai pra além de mim.
-    Não vai. É porque você cria essas idéias pra filtrar o que sente. Cria essas barreiras. Mas lá no fundo você sabe. Está escrito na sua essência como uma marca na pedra. Você não pode apagar. Só que você vai nascer na sua hora.
-    Nascer?
-    É. O homem para chegar onde você quer tem que nascer de novo. Tem que nascer da água e do espírito.
-    Isso não é fala de Jesus? – disse Isabela
-    É fala dele sim. Ele já sabia, mas poucos entenderam. Pensam que isso é o mesmo que se converter a uma religião. Mas a água é o fundo da alma da pessoa. A parte que ela não vê porque fica escondida. E é lá que reside o espírito real. A essência. Quando o indivíduo mergulha na água e descobre o espírito, ele renasce. E aí sim ele pode dizer que é o que é. Até lá, ele é um vulto.

Dei uma golada na garrafa.

-    Sabe que você é linda? – perguntei
-    Obrigada.
-    Ta me agradecendo por quê?
-    Eu vou te auxiliar em tudo o que você precisar. Conte comigo.

Ela estava me desconversando. Entendi que ela não aceitaria envolvimento comigo. Não pessoal ou romântico. Eu nem sou digno mesmo. Uma mulher tão sábia, tão linda. Boa demais pra mim. Mesmo assim eu fiquei imaginando. Não manchei a imagem dela na minha mente com banalidades sexuais. Só me imaginava com ela numa rede. Estávamos balançando na rede. Na beira da praia. Tão bom...

-    Pra onde estamos indo? – perguntei.
-    Jack disse que tem um lugar seguro lá pro Canadá. Ele tem o endereço. Está nos levando lá. – respondeu Isabela
-    É uma mansão. Parece que um milionário conseguiu sobreviver e deu um chamado pro exercito. Só que só sobramos nós, daí vamos pra lá. – disse Augusto.

Eu estava com raiva dele, mas sabia que não era culpa dele. Da mesma forma que eu, ele não deve ter entendido ela, mas também não deve ter conseguido resistir. Ela é assim.

-    Quando você fecha os seus olhos, você sabe. Por que ainda me pergunta? Disse Sílvia a Felipe
-    Não sei. Eu tenho medo.
-    Dói. Eu sei que dói. Mas tem que ser assim. Precisa ser assim.
-    Por quê?
-    Eu não sei. Mas é assim. A gente tem que sofrer pra aprender. É só na base do fogo.

Felipe pegou no sono de novo. Bebeu demais. Eu queria estar no lugar dele.
O vazio dentro de mim foi aumentando. Não era mais aquela tristeza de antes. Era mesmo algo que faltava. Algo dentro de mim que eu precisava e não tinha. Eu troquei de lugar, fiquei na janela. Nada adiantou. Ela estava lá. Eu era obrigado a olhar. Eu queria sumir, ou então que ela sumisse da minha vista.
Jack acelerou e ouvimos um som no telhado. Um impacto rápido. Vi os jumpers pela janela de trás.
Felipe levantou do colo de Sílvia e foi até Jack. Mostrou no retrovisor que os jumpers nos acompanhavam facilmente, uns saltando e outros só correndo.

-    Para o carro. – disse ele
-    Quê? Ta maluco, cara? – perguntou Augusto

Jack freou devagar. Os jumpers se alinharam na direção da porta do trailer como um triangulo: da maneira que pássaros em migração se alinham. Felipe saiu, e todos nós o seguimos. O jumper que estava na ponta do triangulo deu um grito, mas nada alto demais.
Felipe tirou uma esfera do bolso e jogou para ele. Ninguém falou nada. O monstro fitou a esfera. Tinha um brilho maligno nos olhos. Ele parecia ter uma consciência como a nossa. Não era só uma fera, como os outros.
Jogou pra cima e abocanhou. Engoliu rápido, sem mastigar.
Seu corpo começou a inchar, como que prestes a explodir. Mas ele não explodiu. Seu corpo cresceu. Deve ter ficado com uns cinco metros de altura. Aliás, as proporções do corpo dele ficaram intocadas. Até o cabelo dele cresceu e ficou mais grosso.
Ele nos olhou e sorriu. Pegou Isabela com uma mão e saltou. Foi tão alto o salto que ele ficou pequeno no céu. Corri na direção dele, mas os jumpers me derrubaram. Silvia parou os jumpers e me puxou de volta para o trailer. Não fui capaz de reagir.
Quando cheguei na porta os jumpers se levantaram e correram na direção em que o gigante pulou. O vento ficou intenso. Assoprava poeira. Entramos no trailer.
Minha cabeça não parava de se mexer. De um lado pro outro, como que negando o que havia acontecido. Desejei uma coisa e no instante seguinte ela se tornou realidade. Eu tinha que fazer alguma coisa.

-    Vamos até uma bifurcação. Depois viramos à direita e vocês deixarão Augusto e Roberto na beira de um rio. Eu vou ficar com eles. Nos encontraremos a dez milhas do refúgio no Canadá. - disse Silvia.
-    Quê? – perguntou Jack
-    Você entendeu.

Realmente chegamos numa bifurcação e Jack pegou a direita. Depois de algum tempo vimos um rio. O silêncio que reinava no trailer foi quebrado.

-    Chegou. Pare aqui. – disse Sílvia. – você tem certeza, Roberto?
-    Eu tenho.
-    Que porra é essa? – perguntou Augusto. – vocês estão loucos.
-    Eu to indo atrás da Isabela. Você vem?
-    Como sabe que ela ta por aqui?
-    Eu só sei. Você vem ou vai fugir?
-    Eu vou, mas isso ta muito mal contado.
-    Foda-se. To indo.

Apesar daquela certeza íntima, na verdade eu não sabia de porra nenhuma. Peguei uma metralhadora e uma faca. Saí do trailer e corri na direção do rio. A água estava muito gelada, mas eu tinha que atravessar. Procurei um ponto estreito, mas não encontrei. E nem nenhuma ponte. Pelo menos não tinha correnteza.
Corri e saltei. Não sei mergulhar direito, então caí de barriga na água. Mas nem foi isso o que mais me atingiu. A água estava gelada demais. Depois de dois segundos eu já não sentia nada além de uma agonia enorme. Augusto não veio.

-    Olha lá! – ele disse apontando.

Do outro lado eu vi o gigante com Isabela em cima de uma pedra. Parecia um ritual de sacrifício. Nadei o mais rápido que pude, e quando cheguei na outra borda meu corpo tremia. Eu nem conseguia abrir minha boca direito.
Tentei correr, mas caí. Andei meio cambaleando. Larguei meu casaco. Não percebi, mas molhei a arma e ela parou de funcionar. Peguei minha faca. Eu sabia que era suicídio, mas não ligava. Morrer não podia ser tão ruim.
Olhei pra trás e vi que todos estavam fora do trailer olhando. Augusto, Jack, Kimberly e Sílvia estavam com armas apontadas para o monstro, e Felipe estava abaixado com as mãos no chão. Ele encheu as mãos e terra e as levantou. Estava, por algum motivo, me mostrando a terra. Não entendi nada.
Começaram a atirar. Talvez por causa do tamanho do monstro, que tinha três vezes a minha altura, eles só acertaram tiros nele. Mas ele não se importou.
Ele me segurou numa mão e me levantou no alto. Alguém jogou uma granada no pé dele, ao que sua mão afrouxou e soltei meu braço esquerdo. Peguei a faca e enfiei na mão dele. Caí no chão, lá do alto. Fiquei tonto. Tudo rodando.
Quando eu caí no chão eles começaram a disparar, mas a pele daquele monstro era muito resistente. Os tiros de pistola nem a perfuravam. E os de fuzil não faziam muito estrago.
Ele se abaixou até Isabela e chupou o cabelo dela. Olhou pra mim com algo maligno, mas não hostil. A testa dela estava exposta, e ele abriu a boca. Parecia que queria engolir a cabeça dela. Consegui me levantar, mas caí de novo.
Ele cortou a testa dela com os dentes e depois lambeu a ferida. Era o fim. Isabela estava infectada.
Eu senti ódio. Dessa vez não era um ódio por tudo, mas direcionado. Eu odiei aquele monstro maldito. Levantei e me recuperei. Corri na direção dele gritando, ao que os tiros pararam.
Tentei acertá-lo com a faca, mas ele a tirou da minha mão. Mesmo desarmado eu corri na direção dele. fui lançado pra trás de novo, e voltei correndo. A cada vez que ele me atingia eu voltava mais raivoso.
Na terceira vez eu gritei com toda a minha força. Minha garganta doeu. Senti a vibração.
Dois jumpers surgiram do nada e atacaram o monstro, que partiu um deles no meio com facilidade e saltou com o outro agarrado em seu braço tentando alcançar sua cabeça.
Caí de joelhos no chão e desmaiei.

Apareci no jardim de Gaia.

-    Não faça essa pergunta. Você sabe a resposta. – disse Gaia.
-    Eu sei. Devo só ter apagado. Tava arrebentado.
-    Você não tem muito tempo. Aquele que não renascer da água e do espírito não pode entrar no reino de Deus.

Percebi que ela tinha a forma de Silvia.

-    Você é Sílvia? – perguntei
-    Você não percebeu? A minha forma é você quem escolhe, porque eu mesma não tenho forma. Eu sou tudo e estou em todo o lugar. Antes você me via como uma figura que te impressionou, e agora sou essa mulher, porque ela te fascina. Pare de perder tempo.

Acordei. Silvia estava perto do altar, diante do corpo de Isabela. Ela estava seca. Devem ter encontrado outro caminho pra chegar ali. Ela me olhou, e o olhar dela me fez lembrar o sonho, que quando acordei tinha desaparecido da minha mente por causa da dor que eu sentia por todo o corpo.
Andei meio mancando até o altar. Consegui pegar Isabela no colo. Muito leve. Cheguei na beira do rio, e Augusto gritava do outro lado. Imaginei o motivo de ele também não ter cruzado o rio.

-    Não joga ela no rio! Ta maluco!? Caralho!

Apesar do desespero, ele não tentou cruzar o rio. Ficou fixo numa rocha. Eu pensava que ele viria, mas não veio. Afundei a cabeça dela na água por uns segundos. Vi o sangue saindo pelo corte em sua testa e sendo levado pela correnteza. Foi como se naquele sangue a antiga Isabela tivesse sido levada. Ela nunca mais foi a mesma.
Despertou assustada. Rapidamente se soltou de mim e se encolheu. Ela olhou pro trailer e olhei junto. Sílvia estava saindo de lá.
Olhei pra trás a não a vi. Será que tive uma alucinação. Fiquei pensando que estava sonhando, e isso me deixou aflito.

-    Roberto, a gente tem que conversar. – disse Isabela
-    Pode falar. – respondi.
-    Eu acordei.
-    Não sei se entendi bem. O que quer dizer?
-    Eu abri os olhos, Roberto. Não estou mais dormindo.
-    Você voava comigo de olhos fechados. Foi assim que sonhei.
-    E agora meus olhos abriram. Tudo mudou. Tudo isso tinha me levado a perder a mim mesma. Eu não sabia o que estava fazendo. Uma força me carregava.
-    Não era amor, essa força?
-    Não. Eu só era dependente. É que você tem bom coração. Você nem sentiu que te suguei esse tempo todo. Tem tanto a ser sugado que quase não fez diferença.
-    Não tenho. Eu sou vazio.
-    Não é ilusão minha mais, Roberto. Você me ouviu, me entendeu. Você me amou. Deu tudo o que eu precisava. E agora eu consegui me recuperar. Nada disso teria acontecido sem você.
-    Mas...?
-    Foi isso.
-    Foi?
-    É. Eu já não tenho nada a te oferecer. Nunca tive, no final das contas. Estou liberta e não posso mais continuar assim.

Eu tirei o papel do meu bolso. Queria ter entregado a ela antes. Meu recado, que escrevi quando estava isolado. Triste reler.
Eu estava certo. Ela nunca lerá esse recado. Mas também não posso apagar da minha memória.
O vento levou da minha mão e o papel caiu no rio. Boiou um pouco, mas logo começou a desmanchar. Fiquei olhando pro papel. Eu tremia ainda com o frio e mal podia me mexer de tanta dor por causa dos tombos. Mas eu quase não senti isso naquele momento. Só olhava para o papel se desmanchar com meus sonhos. Minha esperança de ser humano teria ido por água abaixo?
Eu tinha um pressentimento sombrio sobre meu destino. Quis me matar. Mais por medo do que por tristeza. O monstro não me matou porque não quis?
Augusto conseguiu encontrar uma ponte com um mapa e já estava vindo pro nosso lado.

-    Que papel era aquele? Ela perguntou.
-    Não era nada.
-    Não parecia nada.

Eu não tava com cabeça pra inventar desculpas. Estava cansado. No limite.
O trailer chegou e Felipe me trouxe uma toalha. Isabela abraçou Augusto e o beijou. Foi uma facada pra mim. Entramos e o carro seguiu. Dessa vez sem mais paradas para o nosso destino.

-    Cadê a conexão agora? – perguntou Felipe. – não foi só acabar o interesse que acabou também o amor?
-    Verdade. Cadê a conexão?
-    Agora entende que nossa existência não é nada mais do um vazio?
-    Não sei cara. Me dá a vodka aí.

Bebemos o resto. Chorei. Isabela fechou os olhos. Fingiu que estava dormindo, mas o ritmo da respiração não me enganou.
Interesse. Sempre foi tudo por interesse. Eu buscava essa “conexão” nela e ela buscava um salvador em mim. Não tinha como dar certo assim. Ela ficou com a ilusão de que eu a salvei, mas e eu?
Minha tristeza foi se transformando em raiva. Eu arrisquei minha vida, eu doei minha vida. O que ela me deu? Sorrisos, abraços! Pro diabo! Maldita!
Voei no reino cor do de rosa por todo esse tempo pra perceber a ilusão. Ela nunca me amou. Tudo foi uma farsa. Uma maldita ilusão.
Sílvia me deitou em seu colo. Felipe ficou nos olhando. Eu me identifiquei com esse cara. Parecia como um irmão pra mim. E Sílvia tomou o lugar de uma mãe. Minha e dele. Acho que eu era a única pessoa ali a gostar dele.

-    Como é a sensação, Felipe? – perguntei
-    De quê?
-    De controlar os monstros?
-    É como uma conseqüência, observei. Você sente ódio e deixa o seu ódio fluir pra fora você. E é ele que controla os monstros. Ódio...
-    E você, Sil? Controla como? – perguntei
-    Amor. Eu não controlo.
-    Quê? – perguntou Felipe.
-    Se você tem amor em si para dar a esses monstros, eles não vão ser capazes de te tocar.
-    Porquê?
-    Porque eles são trevas e destruição. E isso não se mistura com o amor. São forças complementares mais opostas. O amor constrói, e isso confunde e paralisa os montros.
-    Não consigo. – disse eu. – eu não consigo amar nem a mim mesmo, Sil.
-    Consegue. É que você não nasceu ainda.
-    E eu? E o amor pra mim? – disse Felipe
-    Você quer amor?
-    Eu queria que existisse, mas é uma farsa.
-    Você terá o que procura.
-    Ilusão. As pessoas procuram coisas por toda uma vida e não encontram. Isso não passa de uma falácia do senso comum. – disse Felipe
-    Se você a interpreta com senso comum, então é um erro. Mas veja seu espírito e para onde o seu íntimo se move. Veja o que ele quer ter, e verá que está prestes a alcançar. – respondeu Sílvia.
-    O quê?
-    Caos.
-    Errado. Realidade.
-    Use a palavra que quiser.

Não agüentei mais. Muita informação pra mim. Acabei por me render ao sono tranqüilo no colo dela. Minha deusa...

5 comentários:

Duan Conrado Castro disse...

Revisão ortográfica

a inda assim
o carrinho e, e o corpo que estava
mais uma pessoa preso
a o indivíduo
com a qual fiquei a [há] um tempo
Falar o que[ê]?
Despreza[o] esse sentimento que eu tenho
Não em deixa sair ainda
Felipa levantou
Você a fez demais.
O cai[x]a estava
isso era algo perpétua
- Obrigado[a].
- Ta me agradecendo porque [por quê]?
augusto.
Porque [Por que]ainda me pergunta?
Que[ê]?
monstro ficou a esfera
Ele nos olhou e sorriu.
Pegou Isabela com uma mão e s[a]oltou.
Que[ê]?
Correi e saltei.
boca direita[o].
Silvia
sílvia?
Queria te[r] entregado a ela antes.
Ele[a] nunca lerá esse recado.
Sílvia me deitou no colo dela.
Acho que eu sou era a única pessoa
De que[ê]?
Que[ê]?
- Porque[ê]?
,sil.
- O que[ê]?

Anônimo disse...

Pow.. curti esse episódio! As reflexões foram as melhores até agora..... fiquei meio confuso em algumas cenas que acheio que podia ter descrito melhor, mas não tirou o brilho da história.

espero pelo 21!!!

Silas disse...

Mostre as cenas e eu altero. Tem como? Talvez eu possa melhorar essas parte porque eu escrevi esse capítulo de uma vez só e muito rápido. Daí acabou ficando meio estranho mesmo.

Valeu pelo coment!

Silas disse...

Duan:

Cara, nem sei como te agradecer.

Deve ter te dado um trabalho encontrar esses erros. Me ajudou pra cacete, principalmente porque estão em ordem direitinho. Só que talvez eu não tenha entendido um deles:

"Ele nos olhou e sorriu."

Enfim, muito obrigado. Vou ver os outros comentários. Deixei moderado porque um doido estava comentando merda sem ler e estava chegando propaganda de produtos de limpeza :P

Thalita disse...

O melhor romance para mim.