domingo, 3 de janeiro de 2010

Capítulo 22


A parteira dos destinos nos alerta. A grande mãe é um grande útero. Não é boa nem má. Ela é e dá origem. Bem e mal, destruição e construção. Tudo num lugar só. Para ela esses nomes não existem. O que existe é o natural. Como a natureza pode tanto ser amável quanto terrível, assim é a grande mãe. Carrega anjos e demônios em seu útero. Todos a amam e a temem. Fogem dela e a perseguem. Tal é uma realidade da qual ninguém foge. Tendo consciência disso ou não. Somente os homens que voltam ao útero da mãe natureza e nascem de novo podem ser livres.

A minha espada estava cheia de sangue, mas eu queria mais. Não foi o bastante. Saltei em meio às nuvens. Estava envolvido numa capa vermelha que brilhava nas extremidades. Eu não podia ver meu rosto. Apesar do aspecto decrépito da minha mão, que parecia estar caindo aos pedaços, eu carregava uma espada enorme.
Quando caí, encontrei um exercito e jumpers na minha frente. Milhares. Eram os rebeldes. Não sei como, mas eu sabia disso. Estávamos numa espécie de deserto, onde eles tinham vantagem. Mas aquilo era irrelevante.

- Nos libertamos e morreremos livres - se pronunciou um deles.
- Depois da morte a liberdade acaba. – respondi.

Um jumper foi na direção desse que falou e abriu o próprio peito com um facão estranho. Brilhava na ponta e não era reflexo do sol. Tirou sua esfera de força do peito e entrego ao líder, que a comeu. Até eu fiquei surpreso por ele ter conseguido lidar com o poder. Eu estava orgulhoso dele.
O jumper que se sacrificou correu na minha direção, ao que o parti no meio com minha espada.
Parecia uma cena dessas que se vê em jogos. O monstro correu na minha direção, e parei ele com a força do pensamento. Não podia se mover nem um milímetro. Passei minha mão no rosto dele e sorri. Finalmente eu tiraria aquele impulso odioso de dentro de mim por algum tempo.
Os monstros que o acompanhavam pularam na minha direção, ao que parti seu líder no meio e concentrei a força do pensamento para atrapalhar o sinal deles. De alguma maneira eu conseguia impedir o controle deles com minha vontade. Ficavam como que desnorteados e indefesos.
Comecei a destruí-los. Meu irmão estava assistindo ao meu espetáculo. Estava gostando.
Algumas vezes eu matava cinco com apenas um golpe. Um genocídio. Quando meu impulso passou eu me sentei e me concentrei. Joguei minha espada no chão e abri ali um buraco, onde encontrei água. Tirei minha capa e vi meu reflexo. Uma imagem terrível. Velho, enrugado, olhos vazios e avermelhados. Senti um calafrio por uns instantes, como que lembrando de um passado muito distante que já se apagava de mim. Nem sempre eu tinha sido daquela maneira.
Meu espírito se abateu e eu comecei a explodir os monstros com a força do pensamento. Tão indefesas, as criaturas. Não entendi bem o motivo de se rebelarem. Seu líder não era diferente de nós. Só era mais fraco e iludido.
Joguei os últimos sobreviventes na água e pulei pelas nuvens sem minha capa. Eu contaminava as nuvens com minha essência, criando tempestades, e matava os último pássaros que ainda restavam no céu. Conseguimos um serviço completo naquele mundo.

Acordei com uma sensação funesta. Minha cabeça estava queimando. Eu sentia ódio. Eu era como aquele velho, com o qual me identifiquei no sonho. Poucas vezes eu pude me lembrar de um sonho tão nitidamente.
Todos ainda estava dormindo, menos Jack, que continuava dirigindo. Vi Isabela abraçada com Augusto. Muito gostosa.
Queria comer e matar. Talvez algo parecido. Depois de um tempo eu percebi como meu pensamento era desprezível e mergulhei em devaneios depressivos. Era mesmo eu no sonho. Mesmo com esse corpo diferente, grande e até mesmo vigoroso, tal era a minha essência: um velho destruidor e destruído. Servo das trevas e senhor dos trevosos.
Meu irmão era como o velho que jogava cartas com Mefistófeles.O mais perto de carinho que eu sentia era o contato com ele. Relembrar nossas jornadas. Só era ruim quando lembrávamos dos tempos antes da trevas, quando éramos inimigos. Tudo por causa de uma puta qualquer.
Eu nem sabia de onde essas lembranças estavam vindo. Mas parecia que a cada instante que continuávamos prosseguindo por aquele caminho eu ia despertando.
Lembrei que concordamos em odiar a essência feminina até os últimos dias do universo, quando tudo se converteria em nada. E, no entanto, eu jamais poderia odiar Sílvia. Tinha rancor de Isabela, mas sabia que no fundo ela não passava de uma vítima de si mesma. Eu sentia prazer em repetir para mim mesmo que Isabela era fraca, louca, débil, indigna do meu amor. No fundo eu só pensava isso por rancor. Porque ela ainda era como uma musa perdida pra mim naquele momento.
Felipe estava com um sorriso maligno no rosto. Um sorriso meio insano, megalomaníaco e, diria, até um pouco depressivo. É só vendo que poderiam me entender.
Abri uma janela lá atrás. Vento gelado. Rapidamente eu deixei de sentir o meu rosto. Foi como se eu estivesse flutuando pelos nuvens de novo. Talvez a sensação do sonho tenha tido origem no próprio vento, que bateu no meu rosto enquanto eu dormia. Foi mais real do que um sonho comum.
Sílvia se encolheu na poltrona e eu fechei a janela. Pensei que estaria incomodando aquele sono tão tranqüilo dela. Estava certo, porque ela relaxou alguns minutos depois de eu fechar.
O sol começou a aparecer e me aborreci. Eu queria que a noite não acabasse.
Vi Jack bocejando. Parecia bem cansado. E Kimberly estava num sono pesado. Não me lembro de ver outros dirigindo que não eles. Decidi tentar.

-    Posso tentar aí? – perguntei
-    Quê? Dirigir?
-    É.
-    Ok. – ele hesitou um pouco. – Não precisa nem parar nem nada. Pisa aqui nesse pedal e segura o volante.

Ele era um sujeito muito grande. Era uma sensação estranha ver alguém maior do que eu. Não estava acostumado com isso.
Sentei no banco do motorista e fizemos um malabarismo ali pra ele sair por cima, mas acabou esbarrando no volante e demos uma virada brusca. Consegui manter o trailer na estrada, mas todos acordaram, com exceção de kimberly.

-    Não é nada demais. – disse Jack. – podem voltar a dormir.

Augusto e Isabela voltaram a dormir rapidamente, e Sílvia começou a arrumar o cabelo. Felipe olhou para o sol e fixou os olhos. Não estava bem visível de onde ele estava, mas ainda assim ele se fixou ali. Parecia hipnotizado. Na verdade ele não estava olhando pro sol. Só parecia ter ocorrido algo em sua mente que foi desperto pela imagem do sol, e ele mergulhou em si mesmo.
Sílvia foi até a pia e lavou o rosto. Escovou os dentes, penteou o cabelo. Não entendi aquilo muito bem, pois imaginei que teríamos tudo isso no abrigo para o qual estávamos indo. No entanto, aquilo me agradou. Ela ficou linda depois de tão simples cuidados. Era a beleza natural dela. Tentei não olhar muito, por imaginar que fosse constrangedor, mas sempre acabava olhando de novo.
Eu nunca vi um olhar como aquele. Eu tinha a impressão de que ela sabia de tudo e que, no entanto, conservava a humildade. Muito diferente de mim, que não sei de nada e ainda assim de mantenho, por vezes, com a postura de que sou algo.
Meu fascínio por sua imagem jamais poderia encontrar correspondência, é fato, mas meus olhos ignoravam meus pensamentos e expectativas. E isso me agradava.

-    Finalmente, né Felipe? – disse eu.

Ele me olhou por uns dois segundos e depois fixou os olhos no chão.

-    Estamos próximos do fim. O fim da linha. – respondeu
-    Como assim? – perguntei
-    O que você pensa sobre a metafísica? – perguntou ele como que alheio à minha pergunta.

Eu não me importava tanto e ver tal pergunta respondida, então só continuei o diálogo.

-    Penso que, do ponto de vista prático, nunca apresentou grande utilidade. No entanto, todo um universo magnífico e metafísico existe dentro de mim. Às vezes penso que ele não é coisa minha, mas uma interpretação da realidade das coisas por trás da ilusão dos sentidos.
-    Não tem utilidade prática? Mas toda a ciência é baseada em metafísica! – respondeu ele. – tudo o que pensamos é metafísica na essência!
-    Meus delírios metafísicos não são empregados em nada do que é considerado científico. Não estou falando de premissas metafísicas de pensamentos, mas sim de todo um universo alheio.
-    Eu sei. Então, respondendo a sua pergunta. Foi desse universo que eu soube que estamos no fim da linha. Hoje nosso destino será decidido.
-    Mas que papo maluco é esse aí? – perguntou Augusto.

Olhei pra ele com um misto de raiva e desprezo, ao que ele imediatamente se calou. Não respondemos a sua pergunta.
Pobre diabo. Não tem culpa alguma. E, no entanto, não consigo deixar de alimentar certa antipatia por ele por causa de Isabela. Eu estava num dilema. Não sabia se odiava ou se amava as mulheres. Talvez as duas coisas ao mesmo tempo. Eu tinha diante de mim uma deusa e uma prostituta. E ambas aparentavam ser igualmente femininas.

-    É isso o que as mulheres são. – disse Felipe. – querem sugar até a última gota do seu sangue, e se revoltam quando não conseguem. Pensam que são a coisa mais importante na vida de um homem e que deveriam ser tratadas como um tesouro. São criaturas com cabelos grandes, cérebros pequenos e corações mesquinhos.
-    Ta lendo meu pensamento, é? – respondi. – mas olha só pra Sílvia. Olha pra ela e repete tudo isso.

Ele olhou nos olhos dela. Tentou falar, mas não conseguiu. Ela deu um sorriso tímido.

-    Vocês não têm que falar de mim na terceira pessoa se estou aqui do lado, sabem? – falou num tom matinal.
-    E não consigo falar pra ela porque há impulsos me impedindo, provavelmente porque eu quero transar com ela.

Ela o fitou com um olhar confuso entre repreensão e pensamento. Eu não sei dizer se ela estava se sentindo incomodada ou se só estava se esforçando pra entender,

-    É nisso mesmo que você acredita? – perguntou
-    Creio ser o mais razoável.
-    E o seu mundo metafísico?
-    Delírios. São só delírios. – disse Felipe num tom rude

Naquele ponto eu já estava totalmente fora da conversa, mas me interessei tanto que não parei de prestar atenção num momento sequer.

-    Fala dos seus delírios pra mim? – disse ela sem se importar com a agressividade dele.

Parece que porque ela não se importou com sua agressividade ele ficou desarmado. Voltou a se deitar no chão sobre um colchonete de acampamento. Olhou pro teto.

-    É tanta coisa...
-    Conta teu sonho de hoje. Como foi?
-    Eu estava deitado no seu colo, e de repente entrei pelo seu umbigo até o sue útero. Era gigantesco e eu podia nadar ali. Lá dentro eu encontrei uma espada em miniatura que eu sabia que ficaria gigante. Fiquei por alguns momentos praticando movimentos com ela. Muito leve. Dentro de você ela estava limpa, mas quando eu saí, o sol brilhou na direção da lâmina e eu vi várias camadas de sangue. Cada uma marcando a passagem de um dono. Eu viajei pelo tempo como se fosse espaço e pude ver dezenas de homens usando a espada. Não era propriamente homens com corpos, mas espíritos, porque muitas vezes o corpo era diferente mas eu sabia que se tratava do mesmo.Nasci prematuro e matei o médico que me puxou do seu útero. Quando pisei no chão, que era branco e limpo, ele se tornou negro e imundo. Como se o pus tivesse sido queimado a muito tempo. Então você desapareceu. Aí acordei e  vi o sol exatamente como estava no sonho refletindo na espada. Até a montanha bloqueando a luz era a mesma.
-    Como você entende esse sonho? – perguntou ela.
-    Você representa uma figura materna, para a qual minha energia sexual se dirige. Ao querer te comer, eu quero entrar dentro de você para voltar ao ventre materno e renascer.
-    E a espada?
-    Ela é o símbolo do meu destino. Eu vim para esse mundo com o intuito de destruir.
-    Porque você matou o médico?
-    Porque ele mandou.
-    Ele mandou nesse sonho?
-    Não. Não é a primeira vez que sonho com esse sujeito. No último sonho eu recebi ums carta com a missão de matá-lo assim que conseguisse a espada. Tenho uma espécie de vida paralela nos devaneios e nos sonhos.

Sílvia assentiu fechando os olhos e movendo lentamente a cabeça. Não consegui entender aquilo. Será que ela estava efetivamente dando a ele sua aprovação num pensamento como esse? Estaria ela, na posição em que estava autorizando Felipe a destruir? Pra mim pareceu irresponsabilidade, precisamente porque nós dois olhávamos pra ela com um ar de respeito e admiração. Por causa da imagem que eu tinha dela, pensei que havia mais ali do que eu estava vendo. Olhei para Sílvia pelo retrovisor e ela pra mim.

-    É lícito, então, que uma pessoa tenha como objetivo principal de existência a destruição? – perguntei me defendendo com termos rebuscados
-    O lícito e o ilícito são classificações do homem que, com sua consciência limitada e frágil, imagina poder colocar ordem nas coisas. Só que a verdadeira lei não s submete aos seus arbítrios e continua funcionando por si mesma.

Parei por um instante refletindo sobre aquilo. Felipe mergulhou em si mesmo, e a partir daquele momento se manteve alheio ao nosso diálogo como se não lhe dissesse respeito.

-    É, então, possível que a existência de um indivíduo seja simplesmente voltada para a destruição?
-    É possível que toda uma vida seja voltada apenas a isso. Mas você não tem diante dos seus olhos toda uma existência, porque pensamento algum pode ver tão longe. Nem os mais sábios podem, com seus pensamentos e suas conjecturas, ver tão longe, porque estaríamos esbarrando no infinito. Apesar disso, todo esse espaço é irrelevante, pois só há o presente de verdade. Vou responder à sua verdadeira pergunta: não.
-    Como assim minha verdadeira pergunta?
-    Pense bem. Vai ver qual é sua real dúvida aqui.
-    Não sei do que você está falando.
-    Sabe sim. Só está desacreditando sua intuição. Ela é a sua força guia. Não percebeu isso ainda?

Olhei pra janela ao meu lado esquerdo. Abri um pouco o vidro e deixei um pouco de ar entrar. Não vi qualquer sentido no que ela estava dizendo. Como minha verdadeira pergunta? Imaginei que ela poderia não passar de uma lunática e que eu a estava superestimando por conta da minha tendência a mistificar as coisas, então acabei deixando isso de lado.
E minha alma se remoia por dentro, pois eu conseguia ver dali o joelho e a canela de Isabela. Estava dormindo no colo do augusto. Todo o trailer estava muito apertado.
Eu sentia um rancor terrível. Eu odiei o mundo profundamente. Esse lugar imundo e infectado por bestas incapazes de qualquer reação minimamente humana. Povoado por tais criaturas abomináveis que não possuem nenhum controle sobre si e nenhum senso. Nem ela, que imaginei ser minha musa, seria capaz de me fazer companhia. Felipe até poderia ser um amigo, mas vivi imerso num rancor que criava nele um casco. Era impenetrável, e imaginei que jamais poderia esperar amizade dele.
De qualquer maneira, não era só amizade que eu queria. Eu queria toque, carinho, companhia feminina. Naquela manhã ainda por cima eu estava com vontade de comer ela, coisa que eu podia ter feito tantas vezes, mas não fiz.
Meu ódio começou a me dar força e depois sugar, num ciclo meio louco. Mas ninguém percebeu que eu estava mal. Ao menos foi isso que eu percebi na hora, mas minha visão estava imersa em neblina...

-    Roberto, vire na próxima esquerda. Estamos chegando. Finalmente!

Ao ouvir isso, Kimberly despertou. Eu nunca mais vou esquecer de como ela estava. Apesar de aquele ser o momento pelo qual todos esperávamos, ela estava como que letárgica. Olhava para as coisas pás parecia fora de orbita. Como se estivesse sempre meditando, mas nalguns momento eu percebi que ela estava tentando se comportar naturalmente.

-    Tudo bem contigo, querida? – perguntou Jack
-    Tudo. É que acabei de acordar. To meio lenta ainda. – ela respondeu
-    Mas você sempre acorda com a corda toda.
-    É. Vai ver eu ainda estou um pouco cansada. Não sei o que tenho, mas não me sinto mal. Só como se estivesse sob efeito de sedativo ou algo assim.
-    Tomou algum remédio?
-    Não. Nada.
-    Fica sentada e não faz extravagância. Quando chegarmos lá deve ter algum médico pra te examinar.

Ela olhou nos olhos dele por uns segundos e não disse mais nada. Abraçou as pernas, que observei com cuidado naquele momento. Que gostosa.
Minha abstinência estava me matando e eu estava no carro com três mulheres lindas, com as quais eu não poderia ter nada. Até aí se estendeu a minha revolta.

-    Atenção, companheiros. Em aproximadamente uma hora nós chegaremos no nosso refúgio. – disse Jack em voz alta.

Felipe olhou pra ele, Sílvia arrumou o cabelo. Isabela de um pulo repentinamente uns 15 segundos depois de Jack fazer o anúncio ficou, por uns instantes, ofegante.

-    Tudo bem contigo, querida? – disse Augusto

Querida é o caralho, pensei comigo.

-    Caralho o quê? – disse Jack
-    Nada.

Pensei alto, ao que parece. Até hoje eu não sei se eu falei toda a sentença ou só o caralho. E provavelmente nunca saberei, dadas as circunstâncias. Mas eu não me importava.

-    A gente tem mesmo que ir pra esse lugar? – disse ela
-    É a nossa melhor esperança. – respondeu Augusto. – porque essa pergunta agora?
-    Ah. Não é nada. Só um pesadelo que eu tive. Acordei ainda meio confusa, sem saber distinguir o real do sonho.

Apesar de detestar até mesmo o som da voz dela, eu também não conseguia simplesmente deixar de ouvir e de me preocupar. Quis perguntar como foi o sonho, mas estava aborrecido demais pra falar. Augusto não demonstrou nenhum interesse no sonho, então ficou por isso mesmo. Nunca tive a oportunidade de ouvir o sonho dela, mas agora imagino que ele pode ter sido, de alguma forma e até certo ponto, um sonho premonitório.
Felipe voltou a deitar no colo de Sílvia e Kimberly apoiou o queixo no joelho e começou a se balançar de um lado pro outro. Jack começou a organizar as armas e todos os recursos disponíveis para desembarcar e descarregar para dentro do refúgio. Todos sabíamos que esse refúgio poderia já ter caído, pois havia contactado as forças armadas convocando-os para lá, sendo, talvez, um pedido de socorro.
Acelerei o trailer e Jack quis me alertar sobre o risco, mas não se importou. Pensou que eu só estava com pressa. Mas eu estava cheio de raiva nem percebi que aumentei a força no pedal e que a velocidade. A cada instante que se passava a minha raiva aumentava. Não me lembro da última vez em que eu senti tanto ódio direcionado e por tudo ao mesmo tempo.
Vimos uma espécie de fortaleza bem longe, e Jack a viu com binóculos.

-    Só pode ser aqui. Há homens alinhados nos muros. Infectados não fazem isso.

Dei uma risada maliciosa e discreta. A mim parecia claro que esses monstros eram sim capazes de simular certos comportamentos humanos. Principalmente os jumpers. Mas eu queria mesmo que fosse infectados e que todos morressem. Sílvia conseguiria se salvar e talvez também Felipe. Eu nem tinha interesse em me salvar. Também tinha um acentuado ódio por mim mesmo.

-    Posso ver? – perguntou Augusto em inglês.

Nem imagino porque ele usou essa linguagem. Na hora eu estava procurando motivo pra me irritar, então acabei imaginando que ele só queria se auto-afirmar. Senti vontade se bater nele, mas não podia sair do lugar e provavelmente nem seria capaz de fazê-lo.

-    Roberto, teremos que dar uma volta naquela colina. Não há como subirmos por ali com esse trailer.

Eu apenas olhei nos olhos dele. Não queria dizer nada pra ele. Na verdade, eu queria assistir sua cabeça explodir diante de mim. Eu estava cheio de ódio.
Como eu estava bem rápido, chegamos logo na colina e virei à direita pra dar a volta nela. Havia mesmo uma estrada de terra batida. Provavelmente para caminhões.
Havia um rio peculiar ali. Era, na verdade, um abismo no fundo do qual corria água. Não pude ver direito porque ele estava do lado direito do carro e a minha janela me mostrava só um monte de mato. A volta foi relativamente longe e com algumas curvas. Estranhamente, passei pelas curvas com facilidade, mesmo sem saber dirigir. Até troquei de marcha num ponto, o que eu não conseguia fazer com facilidade. Depois de uns vinte minutos nós chegamos na frente da fortaleza, onde havia uma porte enorme fechada. Não era uma entrada para carros. Parecia mais uma entrada daquelas antigas, embora o aspecto da fortaleza em si fosse bem moderno.
Identifiquei que os homens lá em cima eram jumpers pela intuição, mas eles nos ignoraram completamente. Estavam como que de guarda contra um perigo que nada tinha a ver conosco.
Ninguém sabia se deveríamos mandar algum sinal, se sabiam da nossa presença. Esperamos alguns minutos dentro do carro até que Kimberly se levantou. Foram os últimos instantes de calma.
Ela foi devagar até a porta e olhou para Jack. Ainda estava como que dopada. Saiu pela porta e uma bala de fuzil atravessou sua cabeça.
Jack correu instintivamente e começou a atirar na direção da frente do trailer, para onde eu estava olhando. Os tiros vieram de um jipe militar, do qual três militares americanos atiravam. Eu vi os olhos de um deles por uns segundos. Estava concentrado e mirando na minha cabeça. Estava pronto pra me matar.
Fechei os olhos e ouvi um disparo.fiquei assustado de início, mas logo percebi de onde ele veio. Augusto acertou a cabeça do atirador.

-    Pra dentro porra! Bora! – gritou augusto.

Foi tudo muito rápido. Jack estava com o portão aberto e Augusto atirando contra os militares. Os jumpers não reagiam. Felipe foi o primeiro a entrar e Sílvia desapareceu.
Antes de Isabela sair, um jumper pulou contra a porta e a trancou dentro do carro. Augusto tentou enfrentá-lo, mas foi derrubado. O monstro amassou a porta de tal maneira que Isabela não conseguia mais abri-la. Depois parou por uns instantes e subiu no muro de novo.

-    Caralho esse lugar já foi infectado! Vota, porra! – disse Augusto
-    Volta pra onde?! – gritou Jack.

Ele correu até a entrada do carro, onde o corpo de Kimberly estava jogado. Se abaixou  e começou a chorar. Felipe não voltou de dentro da fortaleza e eu estava ali no meio sem nenhuma arma. Corri pra dentro.
Havia um pátio enorme iluminado pela luz do so que entrava por enorme janelas. Algumas estátuas ficavam ordenadas formando uma espécie de corredor, no qual havia um tapete vermelho com as bordas brilhantes. Era lindo, embora sombrio. A parte brilhante, enquanto você não a fitava, parecia sangue corrente. Todo o ambiente tinha um peso maligno que me agradava. Principalmente naquele momento.
Na medida em que eu ia me aprofundando, a intensidade da luz diminuía. Meus olhos foram se acostumando com a escuridão.
Ouvi os tiros lá de fora. O eco se espalhava pelo ambiente amplo. Jack e Augusto estavam lutando lá fora. Ignorei o som e continuei andando como que ao acaso. Virei num corredor à direita e depois à esquerda de novo. Continuei na mesma direção, mas fora do corredor principal.
No final desse corredor paralelo, havia uma escada. Eu estava andando sem ter nenhuma noção de onde estava e para onde estava indo. Andava por impulso, como se ali fosse minha própria casa, mesmo estando alheio a tudo que havia por ali.
No fim da longa escadaria, direi à esquerda e andei um pouco. Havia uma parte da parede aparentemente destruída, com concreto espalhado pelo corredor.
Mas quando cheguei parto, percebi que justamente do buraco destruído saía uma espécie de corredor. Na verdade era mais como uma passarela, mas com estilo antigo. Toda bem feita, num estilo clássico. Imagino que existem melhores para definir isso, mas não prestei tanta atenção e nem conheço bem esses nomes. Era uma passarela a céu aberto, com uma cerca feita, aparentemente, de cerâmica que ficava na altura da minha cintura. No final dela Felipe estava de pé com um homem de terno. Estavam de frente para as montanhas que ficavam ali atrás.
Continuei caminhando na direção até que levei um susto. O monstro gigante apareceu diante deles. Estava como que abaixado ali.
Só era possível ver seus ombros e sua cabeça por conta da altura daquela passarela que, percebi, não levava a lugar algum. Acabava ali.
O monstro olhou pra mim com um sorriso irônico, ao que Felipe e o homem notaram minha presença. Continuei andando na direção deles da mesma forma como andava no interior da fotaleza. Impulsivamente.
Quando cheguei diante deles levei um susto. Aquele homem era idêntico ao velho que eu vi nos meus sonhos. Que jogava cartas com Mefistófeles. Ele era, de alguma maneira louca, meu irmão.
Era naquele dia, senti, que eu iria descobrir meu verdadeiro destino.

-    Então espere até que você tenha aprendido o necessário. Aí sim você poderá assumir sua posição de direito. – disse o velho.

Cheguei diante deles e o monstro não gostou da minha presença. Ele virou as costas para mim.

-    Quem é esse? – perguntei olhando pro monstro.
-    Pelo que eu sei, seu maior inimigo. – disse o velho.
-    Porque meu inimigo?
-    Não se faça de besta, irmão. Não precisa aqui fingir que não sabe as coisas que sabe. Não estamos entre idiotas. Sabe muito bem o que você já fez contra ele.
-    Esse rosto me é familiar. – disse Felipe. – ele era alguém famosos antes de se transformar nisso?
-    Só se você está inteirado acerca de questões de economia. Ele era um banqueiro. Aliás, por mais que os outros não quisessem assumir a quantidade de dinheiro que possuíam, ele alega que era o homem mais rico.
-    Irônico ele se transformar nesse monstro, não? – perguntou Felipe
-    Nem um pouco. Na verdade é o mais sensato. O nível mental selecionado para que um homem possa ocupar a posição que ele ocupava é perfeito para esse tipo de psicoinfecção.
-    Como assim? Que tipo de infecção é essa? – perguntei
-    Dentro dos conhecimentos que você é capaz de manifestar, que são baseados na informação trocada por aqui, explicar isso fica difícil. Até mesmo essa palavra é demasiadamente ambígua. O que quis dizer é que a infecção em si possui um núcleo psíquico com o qual ela realiza todos os seus processos, desde controle até recepção de energia.
-    Quê? Recepção de energia?
-    Você só precisa despertar, irmão. Sobre tudo isso você tem um conhecimento tão aprofundado quanto eu.
-    Quer dizer que a esfera que fica dentro dos infectados não produz energia? – perguntei.
-    De maneira alguma. Só produz energia como última alternativa, quando não pode receber energia de fora. Mas dura apenas alguns segundos.
-    Eles gostam do deserto! Caralho! A água!
-    Viu como está em você?

Minha cabeça estava num estado de euforia. Muita informação como que jorrando de dentro de mim. Agora tudo fazia sentido. Os monstros não nadavam, fugiam da chuva. A infecção não se desenvolvia dentro da água.

-    Então isso não é como uma infecção viral ou por bactéria, certo? – perguntei
-    É uma infecção por consciência. Irmão, tente se lembrar do que sabe antes de me fazer esse tipo de pergunta. Não sabe você mesmo que a consciência está entranhada em todas as coisas?
-    Desde a primeira mordida, tudo é controlado por inteligência, e não há sequer uma reação puramente química na infecção. Então há como resistir a essa infecção?
-    Poucos podem fazer isso. Somente os mais hábeis em força de consciência, como os dragões. É o caso deste que está diante de você.

De repente mais uma torrente de informações loucas e, no entanto, surpreendentemente coerentes surgiu na minha mente. Aquela besta me perseguiu por tanto tempo que mal me lembro de existir sem ser perseguido. Como se eu tivesse vivido várias vidas em vários mundos. E já tivesse feito muito mal contra essa criatura, até que agora, finalmente, ela tomava o meu lugar.

-    Tudo isso foi só por querer meu lugar?
A criatura se virou e me olhou nos olhos. Fiquei surpreso quando ela começou a falar, com uma voz bizarra de tão gutural.

-    Finalmente eu alcancei a liberdade! Agora o seu reinado caiu e o meu começou!
-    Que patético. Você não amadurece?
-    Segundo que perspectiva? Você caiu nas garras daquela vadia. Era a nossa única inimiga comum que, no entanto, sempre amamos.
-    Você é um escravo. Tudo o que te motiva é teu próprio orgulho e essa ganância insaciável. Tomar o meu lugar não será o suficiente.
-    Tem razão. Ainda preciso de mais. Vou destruir você completamente. Cada aspecto do seu novo mundinho dos sonhos será demolido. Você não está em condições de me enfrentar. Toda essa merda que você aprendeu a amar deixará de existir!
-    Quer destruir todas as coisas que existem? – perguntei
-    É o destino do universo. – Disse Felipe. – tudo será reduzido a nada.

Olhei pra ele sem saber muito o que dizer. Eu tinha em mente que isso era e não era verdade como que por intuição, mas não encontrava uma maneira de explicar tal concepção. Ficamos em silencia por uns instantes e acabei mudando de assunto.

-    Mas quem é Mefistófeles? Sei que não é você... – perguntei
-    Quem? Mefistófeles? Entenda, primeiro, que esse nome foi você quem escolheu. Na verdade, ele não pode ser classificado com um nome. Eu o chamo de A destruição, porque é a única palavra que conheço que se aproxima do que ele é. Pra ele não existe tempo nem espaço, e também não há nada que ele não saiba. Nós comparamos e refletimos para tentar entender. Mas ele sabe de tudo, então não precisa comparar. Ele deixou de conhecer e passou a ser. Ele é a destruição inerente a tudo, e portanto é onipresente. Nada escapa ao seu poder de destruição e nada existe que seu intelecto não englobe. A destruição foi trazida para esse mundo no momento em que Mefistófeles voltou seus olhos para cá. – Respondeu o velho
-    Mas por quê?
-    Não existe porque para ele. Porque não existe passado. Também não existe para quê. Não existe futuro. É porque é. Só é, nada mais.
-    Tenho um nome melhor. – disse Felipe
-    Qual? – perguntei
-    A realidade última. Dizer que ele é a destruição presume que há algo que o contraponha diretamente. Mas o que vai para além desse vazio que sucede a destruição não passa de imaginação.
-    E Sílvia? – perguntei
-    Ela coopera conosco, não percebe? – interferiu o velho. – porque acha que ela não está aqui defendendo algum tipo de ideal contrário? Ela entregou vocês dois para serem servos da destruição.

Senti como que um frio na barriga. Uma pergunta começou a me torturar. Será que era realmente o nosso destino? Será que era aquele o motivo, em última análise, de toda a minha existência?
Eu ouvi Sílvia dizendo: não. E repeti aquilo impulsivamente.

-    Não.
-    Hahahaha! Eu sabia! Você nunca mereceu sua posição!

O velho me olhou com um ar de decepção. Me deu as coisas e deu algo como um comando para o gigante, que saltou em direção à frente do prédio.

-    Você sucumbiu ao poder dos nossos inimigos, irmão. Não tenho escolha senão destruir a força motriz desse poder em você.
-    Ele não terá problemas com a morte de Isabela. Parece que ele se motiva por outra coisa agora. Estranho é que Sílvia nunca disse nada disso pra ele.
-    Vai matar Isabela? – perguntei assustado
-    A morte dela só acentuaria o poder deles sobre você. Vamos trazer essa criatura desprezível para o nosso lado e te mostrar que ela não possui qualquer merecimento e que não conseguirá ir além da existência de um infectado qualquer. Vai ver que ela nunca mereceu toda essa dedicação que você dá a ela e que, em última análise, tal ilusão jamais poderia se renovar.
-    Eu não estou iludido quanto a ela, mas você não tem o direito de infectá-la.

Ouvi o berro do gigante e dei dois passos pra trás. Felipe me olhava num tom de curiosidade. Dei as costas e eles e comecei a correr. Apesar de o chão naquela passarela ser um pouco escorregadio eu consegui alcançar minha velocidade máxima de corrida sem problema. Quando cheguei na parte destruída do corredor, escorreguei com a poeira ali acumulada e caí com o braço direito em cima de um bloco de concreto. Sobre um pequeno corte, mas tinha uma dor terrível no interior, bem no cotovelo. Senti como se a junta estivesse deslocada.
Levantei correndo e desci a escada. Quase caí quando estava chegando no nível térreo, mas consegui me manter de pé. Eu nem sabia o motivo de estar correndo. Ela havia me abandonado e eu jamais conseguiria ter seu amor. Aliás, o amor que eu desejava da parte dela inexistia. Não só ela não estava disposta a me dar o que eu queria: ela não possuía aquilo que eu tanto queria.
No entanto, outra força motriz me mantinha correndo. Eu tinha que perseverar, por algum motivo que eu simplesmente desconhecia.
Quando cheguei na entrada vi Jack puxando augusto para dentro. Aparentemente, estava nocauteado. Não sei dizer o se foi o gigante que o derrubou de vez. Dos dois americanos atirando, apenas um continuava de pé. Era ele contra Jack.
Como o monstro passou a ignorá-los, ele correu na direção da fortaleza. Fiquei parado olhando aquela cena por alguns segundos, até que a criatura abriu o traler pelo teto e pegou Isabela. Lançou ela no chão gramado e deu um de seus berros. Nem tocou nela depois disso: simplesmente saltou e foi embora, sem, no entanto, perder a oportunidade de me olhar num tom provocativo.
Corri até o corpo de Isabela com a intenção de carregá-lo para dentro, mas sabia que ali dentro não era nem um pouco seguro. De qualquer maneira, tentei arrastar o corpo dela pelo gramado com minha mão esquerda, enquanto a minha direita estava doendo muito.
Uma multidão surgiu subindo pela colina e atropelou o homem perto o jipe. Não o atacaram, mas apenas pisotearam seu corpo até um ponto que fui difícil acreditar que ele estava vivo. Por certo não foi meu velho irmão que mandou ele nos atacar. Ainda não descobri que era aquele homem que nos atacava, e receio que talvez nunca descubra.
Eu não teria tempo de arrastar o corpo da Isabela até o interior, então chamei Jack e corri na direção dos infectados. Parei e acenei com o braço esquerdo gritando. Eles prestaram atenção em mim e correram na minha direção.
Felipe estava certo: por maior que seja a sua raiva, quando a multidão é grande demais você não tem como Pará-la. Se torna uma massa totalmente irracional para a qual nenhum tipo de sugestionamento se mostra verdadeiramente efetivo.
Corri colina abaixo na direção do rio, mas a inclinação era íngreme demais e eu caí. Fui rolando até a estrada, onde cortei meu braço direito numa pedra. Isso sem falar que ele já estava deslocado. Tive medo de perder meu braço, mas continuei correndo para não morrer, pois assim ambos os braços seriam irrelevantes.
Novamente caí rolando e bati com o joelho direito numa arvore. Estranhei o fato de que eu só me feria do lado direito e essa foi a última coisa que pensei antes de cair dentro do rio.
A água estava congelante e eu nem sentia mais a dor dos meus ferimentos anteriores: sentia apenas aquela dor por todo o corpo decorrente das queimaduras com o frio.
Comecei a tentar nadar, mas não havia nada por perto em que eu poderia me segurar e nenhum caminho para subir. Nadei contra a correnteza, mas meu braço e minha perna estavam feridos. E precisamente os direitos, que sempre foram mais fortes.
Alguns infectados caíram e realmente morreram, se é que posso usar o termo morte, depois de intantes.
Passei por uma pedra pontiaguda e consegui me agarrar nela. Meu corpo doía muito e eu tinha dificuldades para respirar. Imagino que porque eu estava tremendo muito.
Fui perdendo as forças muito rapidamente e percebi que aquilo de me segurar não me levaria a nada. Toda a minha vida passou diante dos meus olhos. Eu sempre estive assim: me segurando numa pedra e impedindo tudo de fluir. Mas eu não podia mais lutar contra o inevitável. Algo passou pela minha mente:
“Preciso me guiar como a água e ser como a água. Não sou eu quem faz o caminho, mas é ele quem me faz.”
Todo o meu receio desapareceu e eu olhei para trás: havia ali uma queda d’agua. Não senti medo e me soltei na água. Abri os braços e comecei a boiar. Não foi difícil.
Abri os olhos e olhei pro céus. Minha mente estava, naquele momento, totalmente vazia. Sem rancor, sem arrependimentos... Tudo que havia era nuvens bonitas no céu e meu corpo flutuando. Caí na cachoeira sem gritar e afundei profundamente na base. Eu não sei dizer até onde foi um delírio. Mas afundei muito e as águas, que pareciam estar prestes a me consumir, fizeram meu corpo dançar.
Elas me moviam de um lado para o outro numa coreografia linda que eu jamais conseguiria executar por contra própria. Meus braços se moviam com fluidez e eu girava dentro da agua. Como poderia água fazer tal coisa? Seu movimento não é caótico e inconsciente? Ou será que existe, por detrás do aparente caos das águas, alguma diretriz?
Só me pergunto isso agora, porque no momento eu não pensava nada. Só dançava como a água ditava. Acabei ficando sem ar e fechei os olhos. Morrer dançando segundo os comandos da água. Não seria essa uma morte feliz?
De repente eu estava num jardim. Apesar de eu normalmente não perceber bem os detalhes da aparência das coisas, todo o aspecto daquele lugar me encantava. Havia no centro do jardim um altar, no qual duas mulheres flutuavam com seus olhos fechados. Nunca na minha vida eu vi coisa tão linda.
Cada uma englobava uma polaridade, e cada uma tinha sua própria beleza. Apesar de que pareciam gêmeas em seus traços gerais, o arranjo de cores a diferenciava profundamente. Uma delas era a pureza de espírito diante do sol nascente. Toda a sua forma era pura e imaculada. Delicada e singela: ela era como um anjo. Tinha origem tão alta nos céus que nada nesse mundo poderia macular tal santidade.
A outra era monocromática e parecia mais provocante do ponto de vista carnal. Em volta dela havia escuridão condensada, como se a noite a seguisse mesmo no amanhecer. Havia sangue escorrendo pelo seu rosto, o que indicava que ela não era anjo. Ela não vinha dos céus, mas era fruto da terra.
A primeira era envolvida por uma faixa branca, enquanto que a segunda era contornada por outra preta.
Ambas estavam na mesma posição, que identifiquei como sendo aquela que estava à minha espera.
E andei na direção delas lentamente como uma filha é levada pela brisa. Andei até ela e, diante delas, vi duas esferas. Elas, de alguma maneira que não posso descrever, se uniram e se tornaram uma esfera maior.
Quando toquei nas duas e tentei abraçá-las, entrei para dentro da esfera que começou a rodar violentamente.
Foi tão intensa a rotação que as cores do ambiente começaram a se tornar indistinguíveis. As imagens, inicialmente tão antagônicas, de fundiram num jogo confuso de cores, o qual é impossível de ser descrito detalhadamente. O que sei dizer é que ela se tornaram uma e a esfera foi lançada longe no céu.
As duas ficaram lá, indiferentes à minha partida. Como que sentindo minha confusão por me separar delas, algo apareceu escrito diante dos meus olhos:

“O que gera e cria
Gera mas sem se apossar
Age sem querer para si
Cultiva mas sem dominar
Chama-se Misteriosa Virtude”

Era o que elas estavam ali fazendo. Elas me geraram. Entrei no útero das duas e à partir daquee momento passei a ter duas mães. O elemento feminino em todos os seus aspectos me gerou, e foi dele que a pessoa que existe hoje passou a existir. E eu não era algo a ser dominado. Simplesmente mais um fruto do útero que é lançado no mundo.
A esfera caiu no mar e afundou. A água passava por ela livremente, mas eu não sentia falta de ar. Na verdade, somente naquele momento que eu pude respirar livremente. Foi um momento muito lindo.
A água estava límpida e eu podia ver a luz penetrando na água. Não havia peixes ou qualquer ser vivo ali.
De repente eu vi algo vindo, um vulto sem muita distinção. Prestei atenção e percebi que era uma enorme baleia. Era bonita, e eu sabia que não devia temê-la. Não tinha nenhuma intenção de me devorar.
Parou diante de mim e eu pude ouvir um agudo som se propagar pela água. Era esse o som e essa a imagem que eu precisava ouvir naquele momento. A baleia veio simplesmente se mostrar a mim, sendo ela o próximo mistério a ser desvendado.
Fui puxado para fora do mar violentamente e a esfera foi se desfazendo.

Acordei no colo de Sílvia. Foi bom ver o rosto dela ali quando acordei. Tão lindos, aqueles traços. Eu não estava pensando nada. Só olhando pra ela e ela pra mim. Ela sorria e seus olhos brilhavam. Por algum motivo, meus ferimentos haviam desaparecido. Até hoje não sei como foi que aquilo aconteceu. Será que eu estava fora de mim e, na verdade, nunca me feri? Será que eu fui curado? Será que ela me curou?
Não sei dizer, mas eu estava bem. Aliás, a água que estava em mim era quente.
Não falamos nada. Só ficamos ali por uns instantes.
Um mosquito grande começou a voar entre nós dois e ela se distraiu com ele. Eu acabei distraído com ela, que tentava espantar o inseto e o fitava com um ar lindo, ingênuo, de menina. Não imaginava esse tipo de beleza nela, que era uma mulher madura.
Naquele momento eu me dei conta de que nós nos separaríamos por tempo indeterminado. Ela não podia ficar ali comigo. Tinha suas próprias missões a cumprir, e comigo não tinha mis assuntos a tratar por hora. Levantamos e caminhamos pela floresta. Bem densa, mas com uma trilha bem delimitada que nos levou até uma longa estrada. Havia na estrada uma tenda com instrumentos médicos e um notebook. Ele estava conectado na bateria de um carro que estava estacionado ali.

-    Sente-se e escreva tudo o que você viveu. Escreva tudo o que sair da sua mente. Depois leia tudo quantas vezes foram necessárias para que você entenda detalhadamente o que se passou no seu corpo e no seu espírito. Quando estiver consciente de todas essas coisas e se sentir seguro, pegue aquele carro e vá por essa estrada. Simplesmente vá. Os ventos te dirão qual é o teu próximo destino. – disse ela.
-    Nos veremos novamente? – perguntei em voz baixa
-    Eu não sei dizer. O futuro fica no futuro. Talvez eu te veja amanhã, talvez nunca mais tenhamos contato. Mas não se preocupe com o futuro. Você tem que viver agora.

Ela me olhou com um sorriso carinhoso pela ultima vez e simplesmente saiu andando para longe da estrada, na direção oposta àquela do qual viemos. Eu não vi nada naquela direção que poderia ser interessante, e ela também não, provavelmente. Mas andou sem se preocupar com isso, da mesma maneira que eu farei logo em breve, quando terminar de entender tudo aquilo que se passou na minha jornada.
E não acaba aqui. Na verdade, creio que nunca acaba. No entanto, esse período passou, e sinto ago como uma sensação de realização. Eu tinha uma missão nesse período e a cumpri. Agora cabe a mim entender tudo o que se passou e pegar o carro.
Apesar de que vou direcionar sozinho meu próprio caminho dirigindo, não serei eu a determinar qual será o meu destino. Eu vou fluir como um rio e voar como os ventos. Sem preocupações, sem passado e sem futuro. Só dançando segundo a melodia da vida...

Fim do primeiro Ato

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